A derradeira conquista do Estado social? (2)

Tendo em conta que, para o actual governo PS, o aborto totalmente livre até às 10 semanas constitui um cuidado de saúde cujo interesse público justifica o financiamento pelo erário público e que, em caso de vitória do "Sim", já está planeada a instalação de estabelecimentos privados para a prática do aborto detidos por empresas estrangeiras, talvez a situação seja também enquadrável ao abrigo de algum programa estatal de estímulo ao investimento externo.

Dessa forma, seria possível conjugar numa hipotética vitória do "Sim" no referendo duas políticas exemplarmente estatistas: a consagração do "direito social" ao aborto totalmente live até às 10 semanas e a concessão de incentivos ao investimento estrangeiro. Ambos financiados, como não podia deixar de ser, pelos contribuintes portugueses.

Comentários:
A questão não é tão simples quanto o a. joão a apresenta.

Muitos dos que defendem a despenalização do aborto a pedido não o fazem porque achem que se deve abortar ou porque são contra a vida. Fazem-no porque acreditam sinceramente que quem melhor pode avaliar o valor da vida em gestação e da validade das razões para abortar é quem carrega e sustenta essa vida, não havendo justificação para que o Estado se intrometa nessa decisão e determine se os motivos invocados para abortar são aceitáveis ou não.

Pessoalmente, não concordo com essa posição. Não concordo porque acredito que a vida humana deve ser valorizada e protegida (não de forma absoluta porque, por vezes, é necessário escolher entre duas vidas o que faz com que se decida objectivamente acabar com uma delas) e que essa valorização e protecção se deve aplicar também às vidas humanas em formação.

Quem acredita que um feto não tem qualquer valor e que a continuação da sua existência deve depender exclusivamente da vontade de quem o transporta naturalmente responderá "sim" à pergunta do referendo.
Quem acredita que um feto tem valor mas que o Estado não deve punir quem decida abortar por essa decisão já ser suficientemente penalizadora para quem a toma também responderá "sim" à pergunta do referendo.

Essa resposta faz sentido e é respeitável. Mas este referendo não tem a ver apenas com concepções diferentes do que é uma vida humana nem com saber se o Estado deve ou não julgar quem aborta.

O grande problema deste referendo reside em o que é perguntado ter a ver apenas com uma pequena parte das consequências da vitória do "sim" e muitos pretenderem que a única coisa que está em jogo é precisamente o que é perguntado.

O desvio de meios hospitalares de intervenções cirugicas necessárias para abortos a pedido; o Estado custear o aborto a pedido e sustentar uma indústria que, nos países em que existe (p.e. Espanha), promove de forma descarada a violação da Lei; o tratamento diferenciado (em termos legais) entre quem aborta a pedido às 9 semanas e meia e quem aborta por necessidade às 10 semanas e meia; o facto de "nas primeiras 10 semanas", inscrito na pergunta, vir a acabar por se tornar totalmente irrelevante na prática; a desvalorização objectiva da vida humana; a desresponsabilização do indivíduo pelas suas acções e/ou omissões; a contribuição para comportamentos de risco com consequências directas na saúde pública (doenças sexualmente transmissíveis).
Estas são algumas das consequências da vitória do "sim", cada uma delas suficiente para votar "não" no referendo, mesmo para quem responderia "sim" à pergunta.

No entanto, e é este o ponto da minha resposta, ser a favor da despenalização do aborto é uma posição que, mesmo que dificilmente sustentável no contexto, não é incompatível com a defesa da vida. Poderá derivar simplesmente de uma forma diferente de entender o que pode ser considerado "vida".

Mais do que irmos votar "sim" ou "não" no referendo, o que nos divide são as razões por que vamos votar dessa forma. E o nosso sentido de voto neste referendo em particular tem pouco ou nada a ver com outras matérias em que possamos tomar uma posição.
 





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