Correio dos leitores - Aborto: verdades inconvenientes

Aborto: verdades inconvenientes


Verdade 1

Apesar da frequente acusação de ser uma das mais retrógradas da Europa, a nossa lei é igual à espanhola que aliás foi decalcada da portuguesa. A diferença está na sua aplicação, que em Espanha é feita alargando “ad libitum” o conceito de “risco para a saúde física e psíquica da mãe”, que pela sua subjectividade pode enquadrar as mais diversas situações, mesmo as menos razoáveis. Em Portugal, essa interpretação não se pratica por três razões principais: em primeiro lugar, os defensores do conceito de inviolabilidade da vida, como é lógico e coerente, não concordam, e portanto não promovem essa visão da lei. Por outro lado, os estabelecimentos de saúde do SNS não têm capacidade para o exponencial aumento de abortos que tal implicaria, e por isso (para além de, legitimamente, haver muitos médicos e enfermeiros objectores) não podem alargar o âmbito da prática abortiva. Finalmente, as clínicas portuguesas onde se fazem abortos lucram muito mais com a clandestinidade uma vez que assim cobram cerca de 3 vezes o que se paga em Espanha, e sem recibo…

Resta a intrigante questão dos movimentos pró-aborto nada terem feito de palpável ao longo deste anos para que a lei fosse aplicada como em Espanha. Pessoalmente não consigo ver outra razão senão o facto de que assim se esgotariam os argumentos para manter uma luta política e ideológica que no fundo será a sua motivação principal. Poderão existir outras razões para esse silêncio, mas não as descortino. Seria interessante explicarem-no.

Verdade 2

Como é sabido, diversas clínicas espanholas de aborto estão a instalar-se neste momento em Portugal, e como foi afirmado repetidamente pelos seus responsáveis em vários órgãos de comunicação social, irão fazê-lo “independentemente do resultado do referendo, uma vez que a lei é igual”.

Este facto, embora praticamente ausente da discussão, é crucial uma vez que altera por completo os dados da situação: assim, a partir de agora, independentemente do resultado do referendo, a lei do aborto vai passar a ser aplicada cá como é em Espanha, até porque por arrastamento (e lucro) as outras clínicas e alguns serviços oficiais irão passar a actuar do mesmo modo. Não discuto aqui se concordo ou não com essa prática, apenas constato que é tão inegável quanto inexorável. Constato também que é uma situação que, por razões óbvias, causará grandes preocupações aos defensores do Não, mas que, por outro lado, deveria fazer reflectir, e muito, os apoiantes do Sim e os indecisos: é que passando as coisas a acontecer aqui como já se passam em Espanha, independentemente do resultado do referendo, repito, estão automaticamente esvaziados de conteúdo os argumentos para votar Sim.



Perguntar-se-á se valerá então a pena votar Não. Creio que não só vale a pena, como ficam reforçados os motivos para o fazer:

Prisão das mulheres: para contrariar uma das soluções avançados pelo Não, a descriminalização das mulheres, os movimentos pelo Sim, têm propalado insistentemente a necessidade de se cumprir rigorosamente a Lei. Portanto, paradoxalmente, no caso de vencerem, passará agora a realmente haver mulheres presas (as que abortarem depois das 10 semanas).

Direito à paternidade: se o Sim vencer, nenhum homem terá sequer o direito a ser ouvido se pretender ter o filho que a parceira pretende abortar. O direito à paternidade deixará pura e simplesmente de existir, o que até em termos constitucionais é preocupante.

Defesa da mulher que quer engravidar: se não houver nenhum refúgio na lei para não abortar (por exemplo ela alegar que ter o filho não lhe causará transtornos psíquicos), como se poderá ela defender das pressões dum patrão que lhe dirá que só levou a gravidez para a frente porque não se importou com a sua carreira, ou do companheiro que se desresponsabiliza da paternidade uma vez que ela só teve o filho porque quis?

Banalização do aborto: a total demissão de Estado no reconhecimento de direitos mínimos ao feto até às 10 semanas, será patente se não houver algo na lei que faça sentir às pessoas que o aborto não deve ser um acto banal e irreflectido. Se isso acontecer, as reservas mentais que naturalmente existem (“nenhuma mulher aborta sem sofrimento”) desaparecerão progressivamente, tornando-se o aborto um mero método contraceptivo, eventualmente até um factor de promoção de selecção “à la carte” à medida que a medicina pré-natal alargar o âmbito das suas previsões. Se já acontecem os abortos por não ter o sexo pretendido, somar-se-ão em breve os dos fetos que não tenham possibilidades de atingir características físicas ou psíquicas desejadas, ou em que se anteveja propensão para situações como orientação sexual não desejável, doenças até pouco graves. Estaria assim para breve a ditadura da eugenia.


Fica o apelo para se reflectir um pouco na nova situação que realmente se configura se votarmos Não: a prática do aborto livre como é feito em Espanha, mas as reservas na lei (como lá existem) que permitam defender alguns aspectos civilizacionais e pessoais quando postos em causa. Valerá a pena votar Sim para que a única alteração palpável seja a remoção dessas reservas?



Fernando Gomes da Costa
Médico, sexólogo
COIMBRA
Nº Ordem dos Médicos 22027

(publicado n'O Insurgente)

Comentários:
Se o Ser Humano tem origem na concepção, então tem vida desde o início e continuamente até ao parto.
Assim sendo, o aborto - que não a interrupção da vida ou IVG - é um acto criminoso e não se pode admitir a priori a sua despenalização.
Tal como a partir das dez semanas - ou mais, como nos outros casos previstos na lei -, cada atentado contra o feto deverá ser julgado, isto é, avaliado por um tribunal que aprecie a situação e despenalize ou condene.
Não se procedendo com critério em defesa dos Direitos Humanos, caír-se-á numa situação em que tudo é permitido, desde a maior promiscuidade até à degradação de se utilizar o aborto como método anti-concepcional.
 
O direito de paternidade já é inexistente, perante o actual quadro legal. Onde se encontram os papás das crianças mortas por aborto quando as mãmãs vão a tribunal? Ainda não vi ninguém do não querer levar os homens também a tribunal...
Voto sim e não é por questões de vida ou de morte, questões morais ou afins (não quero impor a minha moral a ninguém e nunca poderei julgar uma mulher por fazer algo que não compreendo porque é difícil colocarmo-nos no lugar dos outros...). É uma questão de direitos das mulher. Ponto Final.
Os do sim têm dificuldade em falar disso. Mas se são as mulheres quem transporta no seu ventre os bébés, os alimenta, cuida deles, lhes dá amor, porque é que, se considerarem não ter nenhuma destas condições, não poderão abortar? A sociedade confia-lhes a mais honrosa e belas das tarefas sociais. Mas retira-lhes toda a autoridade quando, por motivos que não compete ao Estado avaliar, consideram que não poderão ser mães naquele momento de infortúnio.
 
Com esta lei, desprotege-se completamente a mulher-mãe, dificulta-se ainda mais, a mternidade, que não raras vezes chega a ser até censurada pela sociedade actual.
Completa subversão dos valores básicos de um Estado de direito.
Não.
 
Eu sou adepto do NÃO e faz-me a mesma confusão como ao amigo anónimo, a ausência dos papás no banco dos réus. Mas acho que compete à mãe, compartilhar o crime com o companheiro, ou então assumir o encargo sózinha, mas por opção própria e portanto sem poder invocá-la em seu proveito.
 





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