Logro ou ignorância?

O Daniel Oliveira acha que os defensores do "não" tentam enganar o eleitorado quando dizem que «Afirmar que essa lei persegue, penaliza ou condena as mulheres é falacioso e tem como único objectivo enganar.» .
E tenta sustentar a afirmação com base na transcrição de um artigo do Código Penal.
Acontece, caro Daniel, que ninguém o tenta enganar.
A campanha mentirosa é a do "sim" que propagandeia a imperiosa necessidade de alteração da lei para acabar com a prisão das mulheres, quando nenhuma mulher foi, até hoje, presa pela prática de um aborto.
Mas mais, caro Daniel, o seu texto, ao tentar positivisticamente desacreditar o lado de cá, peca pela ignorância das teorias acerca dos fins das penas. Nunca a previsão de um crime (seja ele o aborto ou outro) tem como finalidade perseguir o agente infractor. Ainda que o ideal retribucionista continue presente no pensamento de alguns autores, a quase unanimidade em torno da primazia da prevenção geral positiva (reafirmação da validade dos bens jurídicos violados) e da prevenção especial positiva (ressocialização do agente) como escopos prosseguidos pela pena é pedra de toque na moderna doutrina penal.
Tentativa de enganar ou eleitorado ou simples ignorância, caro Daniel?

Comentários:
Temo, minha querida Mafalda, que seja um misto das duas.

Tal como o pequeno facto - convenientemente omitido das discussões-, de não ser possível a aplicação de uma pena se o agente tiver actuado sem culpa - como acturá na generalidade dos casos limites, sempre convocados para fundamentar a revisão da legislão.

Donde, a ser alterada a Lei actual o que me parece é que apenas se abrirá campo para todas as actuações - com ou sem culpa - enquanto que o ordenamento vigente, por aplicação da parte geral, permite tratar de modo diferente o que é diferente.

Citar o artigo 140º do Código Penal sem mais é, simplesmente, pouco.
DDC
 
Meu querido Diogo,
que bom ver-te por estas paragens.
Obrigada pelo teu contributo.
 
Quer então o dizer que as penas referidas servem apenas como medida do valor do bem protegido, não são, de forma alguma, para alguma vez na vida virem a ser ser aplicadas? Explique-me a mim e às dezenas de jusristas ignorantes que já ouvi e li sobre a matéria.
A verdade é esta: primeiro vocês diziam que não havia julgamentos. Houve. Vários. Depois disseram que não havia condenações. Houve, Depois disseram que não havia prisões. Quando houver, o que dirão então?
 
Faz imensa confusão a maneira - que mais parece premeditada - como a grande maioria dos que se apresentam a debate de afastam da questão central. Se o aborto é um crime - que, salvo circunstâncias particulares, é -, porque deixar de o condenar?
 
Caro Daniel,

Permita-me que lhe diga que vai alguma confusão nesse seu argumentário. Em primeiro lugar a Mafalda e eu falamos sobre aspectos distintos: Por um lado, os pressuposto de aplicabilidade de uma pena e, por outro, as finalidades dessa mesma pena (que pressupõe, necessariamente, que a mesma tenha sido aplicada).

Quanto ao primeiro aspecto, limitei-me a referir que, como decorre da própria natureza do direito penal e da dignidade da pessoal humana, para que uma sanção penal possa ser aplicada o agente terá que ter agido com culpa (para além de outros pressupostos). Com efeito, a aplicabilidade de uma sanção penal pressupõe uma actuação punível, ilícita, culposa e típica (espero não me estar a esquecer de nenhum pressuposto).

Centremo-nos na culpa. Ainda que sem me querer alongar dir-se-á que a culpa, embora não nos dê a medida da pena é seu pressuposto (é seu fundamento) e seu limite inultrapassável. Logo não há pena sem culpa. Descoberta, aliás, tudo menos moderna (como parece inculcar), uma vez que decorre de um aforismo latino – nulla poena sine culpa.

Assim, salvo melhor opinião, falece o seu argumento de que dizemos que a norma não é para aplicar. Apenas lhe explicamos os pressupostos de aplicabilidade da mesma. No fundo, permita-me, apenas lhe dizemos o óbvio – o Código Penal tem uma parte especial (onde se tipificam condutas), mas também tem uma parte geral. Olhar apenas para o tipo implica, em rigor, ver a árvore e não ver a floresta.

Ora, as particulares exigências de punibilidade que o direito penal – dada a sua natureza de ultima ratio – convoca implica que se possa afirmar – sem faltar à verdade, note-se – que todas as actuações chocantes, todas as actuações limites não serão punível, porquanto, no caso concreto, não seria exigível à mulher um outro comportamento. Se não lhe for exigível outro comportamento terá actuado sem culpa, logo não será punida.

Destarte, parece que o sistema, visto como um todo, é o mais adequado. Não trata com indiferença os direitos do nascituro, mas também permite, numa análise casuística, se não puna a mulher. O que não me parece correcto – para dizer o mínimo - é que se convoque como argumento para a liberalização do aborto até às 10 semanas, situações concretas que já estarão a coberto da actual legislação.

Ponto diferente (e para o qual eu estou disponível) é saber se não é possível tipificar algumas outras situações (em complemento das três que a Lei já contempla), onde sendo evidente a falta de culpa ou de ilicitude, se permita o recurso ao aborto. Porém, não é disso que estamos a tratar neste referendo, uma vez que a pergunta pressupõe que até às 10 semanas qualquer argumento seja válido, ou seja, que o aborto seja liberalizado até às 10 semanas. Para isso já não estou disponível.

Outro ponto – o tratado pela Mafalda – é o do fim das penas. Neste caso, pressupõe-se que tenha existido, tenha sido aplicada, uma concreta pena. Como é evidente, haverá casos em que o recurso ao aborto terá sido culposo, pelo que, poderá haver (casos se encontrem preenchidos os demais pressupostos) a aplicação de uma pena. Pena essa, porém, que salvo raríssimas excepções (tão raras que nem conheço nenhuma...), não será de prisão.

Por último, apenas para lhe dizer que ainda que existam condenações – estamos a falar da mulher ou da parteira? – a mesma, obviamente, não tem como fundamento perseguir o agente. Não sou eu nem a Mafalda que o diz. É praticamente toda a Doutrina. Bem como a própria Lei (parte geral bem se vê) que o Daniel tanto gosta:

“Artigo 40º
1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção e a reintegração do agente na sociedade.”


DDC
 
Caro Daniel,

vou tentar explicar-lhe novamente.
Nunca dissemos que não havia julgamentos. Digo e repito que os houve e os deve haver.
Mas também digo e repito que um julgamento não culmina, necessariamente, em pena de prisão. Porque, independentemente da moldura penal abstractamente prevista, pode não existir culpa em concreto que motive a cominação de uma pena e pode, havendo culpa, não haver necessidades de prevenção especial que legitime a pena de prisão, optando-se, nesses casos, por uma pena de substituição (é a parte geral do código penal a funcionar). Pelo que o slogan do sim é ou mentiroso ou ignorante.
E digo-lhe mais. Digo-lhe que nunca, mas nunca uma pena (ainda que aplicada em concreto e ainda que seja de prisão) tem como finalidade perseguir alguém ou fazer esse alguém expiar o mal que cometeu. A finalidade principal de uma pena é a reafirmação contrafáctica da validade do bem jurídico violado e a ressocialização do agente. Pelo que a crítica que teceu ao Rui Castro peca por alguma ingenuidade ou ignorância. Não sei se é jurista ou não, mas convém não tentar atirar areia para cima dos olhos do eleitorado. Tão só isso.
 
porque dizer "A finalidade principal de uma pena é a reafirmação contrafáctica da validade do bem jurídico violado e a ressocialização do agente" esclarece imenso o eleitorado não jurista (ainda a maioria, acho)
 
"A campanha mentirosa é a do "sim" que propagandeia a imperiosa necessidade de alteração da lei para acabar com a prisão das mulheres, quando nenhuma mulher foi, até hoje, presa pela prática de um aborto."

Eu sou jurista e gostava que me explicasse a lógica de defender a validade e justiça de uma norma através da sua não aplicação.
 
Cara Joana,

como jurista devia conseguir perceber o que eu disse e o que o Diogo Campos, no comentário ali em cima, explicou tão bem.

Se não consegue, desculpe mas não tenho tempo nem paciência para me substituir às suas obrigações de estudo de alguma doutrina. Na verdadade, acho grave que alguém que se diga jurista não entenda que, ao dizermos que sem culpa não há crime ou que a aplicação de uma pena não tem como finalidade perseguir ninguém, não estamos a dizer que não queremos que a lei seja aplicada.

Cumprimentos
 
Aborto ou não aborto à parte, a Mafalda peca pelo abstraccionismo e pela arrogância, infelizmente. Eu li o comentário da Joana, não entendo porque lhe responde com tamanha superioridade e, volto a referir, arrogância (intelectual).


R.
 
Cara Joana,

você fosse jurista, não estivesse distraída e fosse intelectualmente honesta, saberia dizer que a aplicação de uma pena não é feita pela medida grande, a menos que haja fortes razões para isso.

Significa isto que a situação de uma mulher que aborta em desespero é levada em linha de conta o que significará que à mesma não é aplicada uma pena de prisão.

Já se o aborto for feito por motivos fúteis ou de forma recorrente poderá - e deverá -ser aplicada uma pena de prisão, no limite, de 3 anos.

Sinceramente, a única coisa que ainda não percebi é se você não é jurista, se está distraída ou se é intelectualmente desonesta... espero que seja distraída. Pelo menos nas aulas de Direito Penal já percebi que estava um bocadinho...
 
Porque eu nunca disse que a norma não era aplicada. A Joana como jurista devia ter percebido isso.
 
Querido Diogo, Querida Mafalda, querida Joana, Querido João, Queridos todos: isto é um camião de material para hipóteses de estudo! Os assistentes ficarão por certo atónitos com o material que lhes vou propôr. Mas uma dúvida persiste no meu espírito e de dia para dia aumenta, ameaçando já envenenar-me a existência. O que raio ando eu e outros colegas a fazer desde sempre para que o ensino do Direito tenha gerado uma avalanche de gente assim? Mea culpa.

Professor X
 
Cara Mafalda e caro Anónimo,
Obrigada por tamanha disponibilidade.
Apreciei sobretudo o tom humilde da resposta da sra Mafalda, da qual releva o espírito tolerante que caracteriza as suas doutas opiniões.
Um grande bem haja.
 
Caro Professor X,

Lamento, mas qualquer professor, pelo menos da minha Casa, jamais teria a falta de frontalidade de dizer que era apenas o professor X.
Cumprimentos,
DDC
 





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