Professor Jorge Miranda
O Blogue do Não passa a contar com a participação especial do Professor Jorge Miranda, reputado constitucionalista, que facultou expressamente os seus textos publicados sobre o referendo do aborto. Apesar de se reportarem ao referendo anterior, são de uma imensa actualidade, pelo que se justifica totalmente a sua divulgação neste espaço. Agradecemos por isso toda o interesse e generosidade.
"Jorge Miranda
In Público, 15 de Fevereiro de 1996
ABORTO E REALIZAÇÃO DOS DIREITOS ECONÓMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
1. A problemática da interrupção voluntária da gravidez é, simultaneamente, de uma extrema complexidade e de uma radical simplicidade.
De extrema complexidade, pelos múltiplos pressupostos e reflexos – jurídicos, sociais e económicos, políticos e culturais, morais e religiosos – que comporta, pela sua dependência de outros problemas, pela variedade das situações em que as pessoas se podem encontrar e pela complexidade dos factores de cada situação, pela complexidade que encerra em si cada vida humana.
De radical simplicidade, porque, exactamente em cada caso, envolve uma decisão sobre a existência de certa e determinada vida humana, sobre se ela deve continuar até ao nascimento ou ser interrompida.
A consciência da complexidade das situações e a solidariedade que deve unir todas as pessoas impõem aqui, como em relação a tantos outros problemas, um esforço redobrado de remoção das suas causas, das causas reais do aborto, a qual só será possível com uma modificação profunda das estruturas da sociedade e do estatuto jurídico do homem e da mulher.
In Público, 15 de Fevereiro de 1996
ABORTO E REALIZAÇÃO DOS DIREITOS ECONÓMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
1. A problemática da interrupção voluntária da gravidez é, simultaneamente, de uma extrema complexidade e de uma radical simplicidade.
De extrema complexidade, pelos múltiplos pressupostos e reflexos – jurídicos, sociais e económicos, políticos e culturais, morais e religiosos – que comporta, pela sua dependência de outros problemas, pela variedade das situações em que as pessoas se podem encontrar e pela complexidade dos factores de cada situação, pela complexidade que encerra em si cada vida humana.
De radical simplicidade, porque, exactamente em cada caso, envolve uma decisão sobre a existência de certa e determinada vida humana, sobre se ela deve continuar até ao nascimento ou ser interrompida.
A consciência da complexidade das situações e a solidariedade que deve unir todas as pessoas impõem aqui, como em relação a tantos outros problemas, um esforço redobrado de remoção das suas causas, das causas reais do aborto, a qual só será possível com uma modificação profunda das estruturas da sociedade e do estatuto jurídico do homem e da mulher.
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2. O carácter insubstituível de todo o ser humano, antes e depois do nascimento, o sentido ético e não apenas histórico que possui a vida humana, a sua inviolabilidade proclamada sem limites na Constituição, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (que proíbe a execução de mulheres grávidas), o abalo que representaria nos fundamentos da sociedade qualquer ruptura ao princípio da inviolabilidade, sobretudo quando a violação parte de quem é mais responsável por essa vida, a demissão de solidariedade que isso implicaria, tudo são motivos que me levam a rejeitar qualquer medida legislativa que envolva a legalização do aborto.
Contra o que acaba de se dizer invoca-se, por vezes, o direito da mulher a dispor do seu próprio corpo; outras vezes, a libertação social da mulher ligada à possibilidade de abortar. Julgo que sem razão.
A mulher não tem, não pode ter, um qualquer direito sobre o feto em nome de um qualquer direito sobre o seu corpo, pois o feto é um ser diferente da mulher, está no seu corpo, depende dele, não faz parte dele (embora o corpo da mulher não seja um seu mero receptáculo).
Nem o poderia ter em nome de um qualquer direito de legítima defesa, porque esse novo ente destinado a nascer não é agressor: agressor poderá ter sido o pai, nunca, o filho; e, se há que punir, o pai deverá ser punido tanto ou mais que a mãe quando tenha sido ele que criou a situação conducente ao aborto.
3. Naturalmente, importa a coerência. Se se defende a vida humana antes do nascimento, também se há-de defendê-la, com redobrada razão, depois do nascimento.
Não se pode ser contra o aborto e, ao mesmo tempo, admitir a pena de morte, ou a tortura, ou a violência policial nas ruas ou nas esquadras. Não se pode ser contra o aborto e, ao mesmo tempo, ser indiferente e não protestar contra condições de vida de miséria, contra formas de exploração de crianças e mulheres, contra discriminações e perseguições a grupos humanos, contra segregações e racismos.
4. Por certo, importa reconhecer que a interrupção voluntária da gravidez provoca traumas, traduz e agrava desigualdades económicas e sociais, é um flagelo social. Só que daqui não resulta a necessidade de legalização. Não serão a droga e a prostituição não menos evidentes chagas sociais? E perante os flagelos sociais a atitude correcta não deve ser a de os combater e prevenir? E, designadamente, a atitude de esquerda e de progresso não deve ser de transformação da realidade, e não uma atitude de resignação e aceitação?
De resto, o aborto, é, na enorme maioria dos casos, a consequência das injustiças e das taras da sociedade. É consequência da falta de educação, de planeamento familiar, de emprego, de salário, de protecção da maternidade e da paternidade. Mas é igualmente fruto da civilização, ou da crise da civilização, hedonista, materialista e capitalista. É fruto da comercialização do sexo, da desresponsabilização em relação aos próprios actos, do consumismo a todo o custo que tal civilização tem engendrado.
5. O que é mais fácil, o que serve mais os interesses dominantes, criar postos de trabalho, construir casas, mudar as relações económicas e sociais, ou liberalizar o aborto? O que está mais de acordo com a Constituição é realizar os direitos fundamentais relativos à saúde, à segurança social, à habitação, à família, ou facilitar a interrupção voluntária da gravidez, adiando assim o cumprimento da Constituição?
Qual a oportunidade de reabertura desta questão na difícil conjuntura que o país atravessa? Não seria mais adequado propor e adoptar medidas legislativas e políticas tendentes à efectivação desses direitos? (em vez de, também por outro lado, o Parlamento e os partidos gastarem tanto tempo com a revisão constitucional?) Qual a oportunidade de medidas legislativas e administrativas de favorecimento do aborto num país como Portugal com uma gravíssima crise de natalidade? Não incumbria, bem pelo contrário, ao Estado e à sociedade aproveitar a figura da adopção e criarem novas instituições para receberem crianças não desejadas ou com problemas?
6. Vivemos numa sociedade livre, democrática e pluralista e num Estado laico, em que nenhuma crença pode impor-se e em que o diálogo entre todas as correntes pode desenrolar-se pacificamente.
A legislação penal é uma prerrogativa do Estado e este pode decidir sobre ela quer por via representativa, através dos deputados eleitos e reunidos em Parlamento, quer por via de referendo, através do próprio eleitorado (um referendo sobre o aborto é, pois, tão perfeitamente possível e legítimo quanto uma votação na Assembleia da República, como demonstrou Vital Moreira neste jornal).
Mas será a questão da interrupção voluntária da gravidez – ou seja, da interrupção voluntária de uma vida humana – uma verdadeira questão de crenças ou convicções, pelo menos fora dos casos de malformação ou de perigo para a vida da mãe? Será uma questão de liberdade de consciência ou não será, antes, uma questão que mexe com as estruturas duma república baseada na dignidade da pessoa humana?"