Algumas notas sobre o Prós & Contras

1. Estive por duas vezes na Casa do Artista para o Prós & Contras: uma para assistir ao vivo ao programa; outra para participar da bancada. Nesta segunda vez, discutia-se o que significava, no presente, ser de direita e ser de esquerda. A produção quis apresentar três exemplos de jovens politicamente interessados e, assim, lá fui eu "representar" essa espécie exótica e levemente paradoxal que é o "jovem de direita". Ao meu lado, estavam um rapaz comunista e um outro, não tão jovem, que a produção queria apresentar como desenquadrado politicamente mas que me confessou ser próximo do Bloco de Esquerda (ou seja, mais um daqueles "independentes" que ligam para o "Dr. Manel Acácio"). Quando a apresentadora se me dirigiu e perguntou o porquê de eu ser "de direita", tentei responder de forma simples, clara, mas exigente. Pelos vistos, a Dra. Campos Ferreira não achou interessante a minha pequena deambulação sobre as razões individuais, antropológicas, sociológicas e até clubísticas do conservadorismo. Por isso me perguntou, logo de seguida, se eu era contra ou a favor do aborto. Respondi-lhe que, em rigor, nem uma coisa nem outra - que era a favor da actual lei. Não sendo a coisa exactamente do agrado maniqueísta da senhora, por ali se ficou a minha gloriosa aparição televisiva. A Dra. Campos Ferreira farta-se de açoitar as palmas que de vez em quando irrompem do público. Mas sabe que é dessa ética de claque que o programa vive. É por isso que incentiva o simplismo e o extremismo das análises.

2. Como seria de esperar, a posição estrambólica de Zita Seabra só trouxe desvantagem e embaraço ao lado do "Não". É jurídica e politicamente insustentável.

3. Uma das razões pelas quais o "Não" ganhou em 1998 e poderá ganhar em 2007 é o facto de os seus representantes se terem sempre mostrado muito mais tolerantes e moderados na argumentação, contrariamente à histeria radical do outro lado, que irremediavelmente afasta qualquer indeciso. Convém que o verniz não estale. Ao fazer o discurso dos verdadeiros médicos (os que alegadamente cumprem o juramento de Hipócrates e votam "Não") contra os meros "licenciados em Medicina" (os restantes), o Dr. Gentil Martins lançou um ataque descabido e um libelo desnecessário. Com todo o respeito que por ele temos, erupções moralistas desta safra não são o melhor serviço à causa.

4. O lado do "Sim" atacou, completamente a despropósito (porque não é nesse patamar que o referendo se coloca), com o argumento de que muitos dos presentes, perante uma situação de violação ou má formação do feto, não optariam pela solução do aborto. A estes não ocorreu a inteligência de responder - conforme, no mesmo palco, há alguns anos, respondeu Henrique Pinheiro Torres - que "sim, nesses casos nós não abortaríamos ou aconselharíamos que alguém o fizesse, mas a lei e o estado não devem obrigar ninguém a ser herói". Neste aspecto, o médico do lado do "Sim" tem toda a razão quando diz que a questão é, tão-só, a de saber o que cada um de nós acha que o estado deve dizer. A única (grande) diferença que me separa do Sr. Doutor é que eu considero que o feto merece a tutela penal de que goza hoje. No mesmo plano, querer mostrar, através de uma participante mais jovem, que o nosso lado é intrinsecamente melhor e que jamais abortaria um feto portador de deficiência é transportar para a discussão um zelo moralista que afasta um capital de tolerância importante. Até porque há muitas pessoas que são indiscutivelmente pelo "Não", mas que não hesitariam em fazer-se valer de uma cláusula de não punibilidade da actual lei. Eu, por exemplo, e em nome da transparência do debate, não hesitaria em aconselhar um aborto (sempre dentro dos limites temporais permitidos) em caso de perigo para a saúde da mãe de um filho meu; tenderia a propôr o mesmo sentido em caso de violação; e ponderaria bastante perante a malformação de um feto.

5. É importante que se sublinhe o perigo para a saúde física e psíquica da mãe que ocorre em qualquer aborto, seja em estabelecimento clandestino ou em estabelecimento autorizado, para assim desmistificar mais um lugar-comum do voluntarismo idealista do "Sim". No entanto, o perigo para a saúde da mãe não é, em rigor, um motivo para a criminalização. E o argumento de Isilda Pegado que a compara ao uso do capacete é uma pura falácia. Para além da natureza radicalmente distinta das ofensas (uma é considerada crime; outra meramente como contra-ordenação), não há nenhuma razão palpável que justifique que o estado seja paternalista ao ponto de me obrigar a utilizar capacete ou cinto de segurança. Em nenhum momento estas condutas se podem repercutir numa terceira pessoa ou entidade. Por isso é que utilizar o argumento da saúde da mulher para justificar a criminalização do aborto é, antes de mais, reduzir a importância da questão ao plano da relação binária estado-mulher, esquecendo o verdadeiro bem jurídico a que se pretende atribuír tutela: o feto.

6. Ficou provado que os mitos do "Sim" podem ser desmontados pela própria acção dos seus representantes. Os julgamentos são sempre alardeados como exemplos de atraso cultural. Mas, por exemplo, no recente caso de Setúbal, julgou-se uma mulher que se submeteu a um aborto aos seis meses de gestação. Muitos dos que hoje estiveram na Casa do Artista insurgiram-se, então, contra a desumanidade. Mas, como é óbvio, não seria esta lei a evitar esse julgamento e esse aborto clandestino.

Enfim, talvez este meu post não seja também o melhor contributo para a causa. Mas para o "Não" vencer é preciso equilibrar o debate nos temas e nos termos correctos.

Comentários:
Ora eis um post inteligente, como há muito não se via neste blog.

É por causa da inteligência do post que gostava de lhe perguntar, uma vez que é adepto da lei actual, que valor (moral, ético, ou outro) julga que é por ela defendido ou a justifica ?

Repare, a resposta tem (desculpe o tem, mas tem mesmo, para podermos debater o assunto a sério) de ter em conta as três situações em que o aborto é despenalizado na lei actual.
 
Vi apenas uns poucos momentos do debate. O tempo suficiente para confirmar que era um debate igual a tantos outros, nos quais, normalmente, não se discute a essência. E faz dó ver indivíduos, homens ou mulheres, com ares de importância, mas sem um raciocínio consonante.

Os protagonistas -refiro-ma às que intervieram e que são apresentadas como referência de intelecto,como figuras cuja palavra deve ser escutada-, não conseguem ser mais que petulantes nem distinguem os compartimentos, e a única coisa que dizem seguramente acertada é a palavra "doutor", dirigindo-se, provincianamente, a "colegas". Pessoas que ocuparam os bancos da Universidade e que não são capazes de construir um raciocínio que não tenha, por suporte, banalidades estabelecidas.

Que outra coisa esta gente prepara, para além do aspecto, quando são convidados para um debate televisivo?

A Zita Seabra só deveria ter uma pergunta a que, à muito tempo e para si mesma, deveria responder: como é que chegou a figura de evidência e como é que consegue aparecer em público, embrulhada em tanta incoerência? Confrange, tanto tempo de antena para pessoas com tantos feriados no pensamento.

O que está em causa nunca será penalizar ou não o recurso ao aborto, mas discutir os moldes em que é possível -se é que é possível, entre tantos interesses que funcionam contra- recuperar o tempo em que, saudavelmente instintivas, as pessoas não queriam morrer nem tinham razões para extender ao útero a sua vontade de desistência. Também o suicídio é crime, mas ninguém ainda me convenceu de que as pessoas são obrigadas a viver e a arrostar com vidas desgastantemente adversas. Felizmente, por bonomia de que a Lei, em excepções, faz uso, tem-se evitado o cúmulo do ridículo: prender ou obrigar à coima um suicida... depois de morto. O que, em Portugal, nem seria tudo!

Enquanto os problemas de estrutura e de fundo não forem discutidos e resolvidos, com a conivência ou com a oposição da Lei, continuarão a morrer embriões e pessoas, em movimento, naturalmente, contranatura.

Já agora, de entre tantos médicos, não conseguiria, a Ordem, encontrar um Bastonário que pudesse ser mais do que boa pessoa?
 
Tambem considero o post extremamente inteligente e considero, tal como os dois coment
arios, que a pergunta formulada no primeiro deveria ser respondida.
 
Caros Comentadores;

Os comentários que merecem os anonimos é de facto... o anonimato! Não querendo identificar-se fiquem com o mesmo estilo de resposta... ou talvez... bom, vou tentar ser melhor do que eles. A respopsta que tanto quer, e ansiosamente pede, está nas associações que acompanham as mães desesperadas não só no seu periodo de gravidez, mas também após o nascimento... Se este sr anónimo estivesse minimaente interessado, informar-se-ia!!!

Deixemo-nos de perguntas de rectórica e estupidas e sem interesse, tal qual como o programa de ontem!!!

A minha sugestão é que se aprenda com a experiência dos que sobreviveram ao aborto. Deixe de se trabalhar num «limbo» imaginário, porque a actual situação do país não nos permite esses luxos.

O que mais me incomóda é a teoria que envolve este tema... temos realmente exemplos práticos
 
muito bom...
 
À pergunta insistente poderei responder com o texto do João Vacas e da Mafalda Barbosa que acabo de publicar no blog, nomeadamente com esta passagem:

"O que actual lei faz é considerar que, porque há perigo para a vida da mãe, a morte do embrião não é ilícita, de modo análogo àquele que nos diz que, perante uma ameaça, podemos agir em legítima defesa. Ou considerar que, em caso de malformação do feto, a culpa da mulher que aborta estava de tal modo excluída que uma das categorias da construção do crime se tornou ausente. O mesmo acontecendo naqueloutra situação em que essa mesma mulher foi violada."

Em todo o caso, tentarei tratar em breve do assunto solicitado.
 
Francisco, não julgo que tenha respondido à minha pergunta.

Eu não lhe perguntei que razão jurídico penal justificava a lei actual. Esse sei eu qual é (e a explicação que cita é parcialmente correcta - está claramente errada no caso da violação e da malformação do feto, porque confunde exclusão da ilicitude com exclusão da culpa, mas isso não interessa ao nosso debate).

O que lhe perguntei é que "VALOR ÉTICO, MORAL OU OUTRO" V. acha que justifica a lei actual.

Não pus a questão no plano do Direito, porque V. também não a colocou assim no seu post, mas no plano dos valores.

Em suma, que valor, no seu entender, justifica que, em certos casos, e em alguns deles muito para além das 10 semanas, o aborto não seja crime ?
 
quero felicitá-lo pelo comentário inteligente.
 
Só acerca do ponto 6: compreende que muitas vezes a necessidade de fazer clandestinamente o aborto o atrasa para lá de todos os prazos recomendáveis? É preciso arranjar os nomes e contactos, é preciso arranjar dinheiro (às vezes bastante), é preciso ter um sítio discreto onde convalescer... Note, não falo do tal caso de Setúbal, cujos detalhes desconheço. E concordo, vai haver sempre casos em que se mantém a clandestinidade e as más condições. Mas serão muito menos, não lhe parece?
 
O valor defendido é a vida humana.
 
Marta, V. percebeu o que eu escrevi ?

O valor que justifica a despenalização de alguns casos de aborto, na lei actual, é a vida humana ?????!!!!!

Que bela pensadora V. daria, se pensasse.
 
O Francisco não há meio de responder.

Estará a reflectir há uma semana na coisa ?

Ou está embatocado ?
 





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