Dizer ao que venho
Cheguei a este blog sem conhecer pessoalmente nenhum dos meus co-bloggers (só depois entraram o Eduardo e o Jacinto), mediante a simpatia de um convite por email que ainda hoje me surpreende. Votarei "não" no próximo referendo porque considero que a cláusula de não punibilidade que se pretende acrescentar às já existentes desequilibra uma lei justa, que harmoniza satisfatoriamente os valores em causa. Por isso, a minha posição é essencialmente reactiva. Alguns dirão que isso é uma fraqueza, mas não poderia ser de outra forma. O que me interessa em todo o debate é defender a actual lei e refutar os ataques desonestos e os processos de intenções de que a mesma e os seus defensores são alvo. Poderei recorrer ao direito, à ironia e à dura realidade, não necessariamente por esta ordem. Para já, transcrevo e adapto dois posts recentes que publiquei no blog da Atlântico.
Princípios frágeis
O debate do aborto serve para muito boa gente exercitar a Virtude através de princípios belissimamente formulados mas cuja validade para a questão concreta eu tenho dificuldade em compreender.
À esquerda, por exemplo, defende-se que nenhuma mulher que aborte deve ser julgada em tribunal e legalmente considerada uma criminosa. Ora, ou eu ando absolutamente alheado da actualidade, ou este princípio é totalmente irrelevante para o referendo hoje aprovado. Pois que se o que se pretende é apenas acrescentar uma causa de não punibilidade às já existentes (aborto realizado a pedido da mulher, nas primeiras dez semanas de gestação, em estabelecimento legalmente autorizado), as mulheres que abortam vão continuar a ser julgadas e condenadas. Basta que abortem para lá das dez semanas, ou em estabelecimento não legalmente autorizado, ou até que, como acontece inúmeras vezes, o Ministério Público reúna determinados elementos e considere, erroneamente, que existem indícios para abrir um inquérito e, mais tarde, provas para deduzir acusação. A quem defende a mera alteração legislativa que vai a referendo, caberia abster-se de argumentar com o princípio de que nenhuma mulher deve ser julgada e condenada por abortar. Por outro lado, a quem defende este princípio, caberia a coragem de assumir que a alteração referendada é inconsequente, não cumprindo os valores em causa, e que o aborto deveria ser despenalizado independentemente do prazo, das razões e do local em que é efectuado. Principalmente quando se passam os dias a acusar os outros de hipocrisia.
À direita, onde a questão do aborto causa algum embaraço, há pessoas que preferem não falar do assunto a tomar posições que as fariam ser vistas nos salões finos do politicamente correcto como uns rústicos ultramontanos. E, por isso (conferir um post do Henrique Raposo aqui há uns dias atrás/abaixo), escudam-se no princípio (tão rigoroso e científico que parece marxista) de que o aborto é uma questão moral e que, como o estado não deve ter nada a ver com as escolhas morais dos indivíduos, não há, em conclusão, grande coisa a discutir. Este argumento - uma importação indevida do discurso económico liberal para o discurso jurídico, que nem na economia liberal é inteiramente aceite - é completamente absurdo e não tem qualquer coerência com a realidade. Praticamente todas as leis (pelas quais o estado regula as nossas vidas e relações) foram elaboradas e densificadas a partir de regras tácitas e práticas reiteradas ao longo dos tempos, as quais assentam numa moralidade comum intrínseca. As (melhores) leis não traduzem uma erupção teórica e burocrática momentânea, mas sim um "dever ser" adquirido por uma determinada comunidade.
Receio pelo que poderia acontecer à sanidade mental destas pessoas se algum dia lessem o Código Civil, todo ele um repositório duradouro dos melhores princípios morais que nos governam. Por que razão o ónus da prova de um determinado facto cabe a quem o alega? Por que razão um cônjuge declarado culpado de violação do dever de fidelidade é desfavorecido nas consequências patrimoniais do divórcio? Aliás, por que razão é a fidelidade um dever conjugal? Por que é que os pais não podem, pura e simplesmente, nada deixar em herança aos filhos? E por que é que quem promete comprar, arrendar ou doar uma coisa qualquer é obrigado por lei a cumprir o prometido? Mais: que raio de moralismo bacoco é esse da "promessa"?
De facto, há muito por onde os amoralistas de direita se entreterem. Para já, tenho más notícias: a lei é moral, o estado é moral, a política é moral. Se não querem que o estado imponha esta moral em particular, tudo bem, defendam uma outra. Mas não digam que o estado não pode impôr nenhuma moral.
À esquerda, por exemplo, defende-se que nenhuma mulher que aborte deve ser julgada em tribunal e legalmente considerada uma criminosa. Ora, ou eu ando absolutamente alheado da actualidade, ou este princípio é totalmente irrelevante para o referendo hoje aprovado. Pois que se o que se pretende é apenas acrescentar uma causa de não punibilidade às já existentes (aborto realizado a pedido da mulher, nas primeiras dez semanas de gestação, em estabelecimento legalmente autorizado), as mulheres que abortam vão continuar a ser julgadas e condenadas. Basta que abortem para lá das dez semanas, ou em estabelecimento não legalmente autorizado, ou até que, como acontece inúmeras vezes, o Ministério Público reúna determinados elementos e considere, erroneamente, que existem indícios para abrir um inquérito e, mais tarde, provas para deduzir acusação. A quem defende a mera alteração legislativa que vai a referendo, caberia abster-se de argumentar com o princípio de que nenhuma mulher deve ser julgada e condenada por abortar. Por outro lado, a quem defende este princípio, caberia a coragem de assumir que a alteração referendada é inconsequente, não cumprindo os valores em causa, e que o aborto deveria ser despenalizado independentemente do prazo, das razões e do local em que é efectuado. Principalmente quando se passam os dias a acusar os outros de hipocrisia.
À direita, onde a questão do aborto causa algum embaraço, há pessoas que preferem não falar do assunto a tomar posições que as fariam ser vistas nos salões finos do politicamente correcto como uns rústicos ultramontanos. E, por isso (conferir um post do Henrique Raposo aqui há uns dias atrás/abaixo), escudam-se no princípio (tão rigoroso e científico que parece marxista) de que o aborto é uma questão moral e que, como o estado não deve ter nada a ver com as escolhas morais dos indivíduos, não há, em conclusão, grande coisa a discutir. Este argumento - uma importação indevida do discurso económico liberal para o discurso jurídico, que nem na economia liberal é inteiramente aceite - é completamente absurdo e não tem qualquer coerência com a realidade. Praticamente todas as leis (pelas quais o estado regula as nossas vidas e relações) foram elaboradas e densificadas a partir de regras tácitas e práticas reiteradas ao longo dos tempos, as quais assentam numa moralidade comum intrínseca. As (melhores) leis não traduzem uma erupção teórica e burocrática momentânea, mas sim um "dever ser" adquirido por uma determinada comunidade.
Receio pelo que poderia acontecer à sanidade mental destas pessoas se algum dia lessem o Código Civil, todo ele um repositório duradouro dos melhores princípios morais que nos governam. Por que razão o ónus da prova de um determinado facto cabe a quem o alega? Por que razão um cônjuge declarado culpado de violação do dever de fidelidade é desfavorecido nas consequências patrimoniais do divórcio? Aliás, por que razão é a fidelidade um dever conjugal? Por que é que os pais não podem, pura e simplesmente, nada deixar em herança aos filhos? E por que é que quem promete comprar, arrendar ou doar uma coisa qualquer é obrigado por lei a cumprir o prometido? Mais: que raio de moralismo bacoco é esse da "promessa"?
De facto, há muito por onde os amoralistas de direita se entreterem. Para já, tenho más notícias: a lei é moral, o estado é moral, a política é moral. Se não querem que o estado imponha esta moral em particular, tudo bem, defendam uma outra. Mas não digam que o estado não pode impôr nenhuma moral.
Aborto e humanismo
Discordo da já célebre proposta da suspensão dos julgamentos em curso pelo crime de aborto. Nesta questão, não é invocando a piedade cristã que o lado do “não” se mostrará mais "humano", mas sim colocando a discussão no estrito plano jurídico e laico. Ou seja, referindo a lei actual com um exemplo de uma lei justa, defensora de um bem jurídico primordial e suficientemente elástica para não obrigar ninguém a heroísmos. Ou seja ainda, centrando o debate no sim ou não a essa lei, em detrimento do normal sim ou não ao aborto.
Coisa que passa por abordar a evolução científica acerca da compreensão da gestação do feto e por refutar os argumentos que colocam o debate no âmbito dos direitos das mulheres.
Mas também, desde logo, por lembrar dois pormenores essenciais. Primeiro, que para além das excepções previstas no próprio corpo do artigo 142º do Código Penal (que regula a "interrupção da gravidez não punível"), o próprio Código, nomeadamente na sua Parte Geral, prevê institutos como o estado de necessidade, a atenuação, a substituição ou a dispensa de pena, os quais são sempre tidos em conta na ponderação do Juíz. Por isso é que, quando quem aborta não é condenado, não se pode dizer, como dizem os opositores da lei, que esta não é aplicada. Havendo ou não condenação, a lei é sempre aplicada. Segundo, que o preenchimento daquelas hipóteses só em Tribunal pode ser aferida.
Impedir que determinada conduta tipificada como crime possa ser avaliada judicialmente é algo que, para além de ser de constitucionalidade duvidosa, transformaria em letra morta a letra da lei (valendo mais, de facto, acabar com qualquer punibilidade). Para além de que assenta na premissa de que todas as mulheres que abortam o fazem em condições de exclusão da ilicitude ou de não punibilidade. Da minha parte, acredito que a maioria o faça. Mas não excluo (e muito menos a lei o pode fazer) que haja quem o faça com o mero intuito anti-concepcional. Ora, mais uma vez, isso só se pode investigar sobre a direcção de um Juíz. Como, aliás, se em referendo vencer a alteração à lei, só o Tribunal (com base, entre outros, nos peritos médicos) poderá decidir se o aborto foi ou não feito dentro do período legalmente permitido.
Ir a Tribunal não é pena ou vergonha alguma. É como num Estado de Direito se resolvem os problemas (num outro exemplo muito mais impressionante, quem provocar um acidente de viação em que acabem por falecer os próprios pais pode ser julgado e condenado por homicídio involuntário). Para além de que, em processo penal, um inquérito que não produza indícios suficientes não leva a acusação e esta, se desmentida em sede de instrução, não vai a julgamento. Ou seja, a esmagadora maioria das mulheres que tenham abortado numa situação que, por virtude da lei, não seja punível ou sequer considerada crime, não terão nunca que enfrentar o Tribunal.
Coisa que passa por abordar a evolução científica acerca da compreensão da gestação do feto e por refutar os argumentos que colocam o debate no âmbito dos direitos das mulheres.
Mas também, desde logo, por lembrar dois pormenores essenciais. Primeiro, que para além das excepções previstas no próprio corpo do artigo 142º do Código Penal (que regula a "interrupção da gravidez não punível"), o próprio Código, nomeadamente na sua Parte Geral, prevê institutos como o estado de necessidade, a atenuação, a substituição ou a dispensa de pena, os quais são sempre tidos em conta na ponderação do Juíz. Por isso é que, quando quem aborta não é condenado, não se pode dizer, como dizem os opositores da lei, que esta não é aplicada. Havendo ou não condenação, a lei é sempre aplicada. Segundo, que o preenchimento daquelas hipóteses só em Tribunal pode ser aferida.
Impedir que determinada conduta tipificada como crime possa ser avaliada judicialmente é algo que, para além de ser de constitucionalidade duvidosa, transformaria em letra morta a letra da lei (valendo mais, de facto, acabar com qualquer punibilidade). Para além de que assenta na premissa de que todas as mulheres que abortam o fazem em condições de exclusão da ilicitude ou de não punibilidade. Da minha parte, acredito que a maioria o faça. Mas não excluo (e muito menos a lei o pode fazer) que haja quem o faça com o mero intuito anti-concepcional. Ora, mais uma vez, isso só se pode investigar sobre a direcção de um Juíz. Como, aliás, se em referendo vencer a alteração à lei, só o Tribunal (com base, entre outros, nos peritos médicos) poderá decidir se o aborto foi ou não feito dentro do período legalmente permitido.
Ir a Tribunal não é pena ou vergonha alguma. É como num Estado de Direito se resolvem os problemas (num outro exemplo muito mais impressionante, quem provocar um acidente de viação em que acabem por falecer os próprios pais pode ser julgado e condenado por homicídio involuntário). Para além de que, em processo penal, um inquérito que não produza indícios suficientes não leva a acusação e esta, se desmentida em sede de instrução, não vai a julgamento. Ou seja, a esmagadora maioria das mulheres que tenham abortado numa situação que, por virtude da lei, não seja punível ou sequer considerada crime, não terão nunca que enfrentar o Tribunal.
Comentários:
blogue do não
Entrada de águia, Francisco (os meus amigos lagartos que me perdoem!).
Ia agora fazer um post sobre o último post do Tiago Geraldo: http://revista-atlantico.blogspot.com/2006/10/liberais-s-quintas.html, mas o que o Francisco aqui escreveu ultrapassa em muito o que eu pretendia dizer acerca do assunto.
Ia agora fazer um post sobre o último post do Tiago Geraldo: http://revista-atlantico.blogspot.com/2006/10/liberais-s-quintas.html, mas o que o Francisco aqui escreveu ultrapassa em muito o que eu pretendia dizer acerca do assunto.
Está respondido (http://revista-atlantico.blogspot.com/2006/10/tiro-ao-lado.html)
E, para que conste, sou Dragão. Doente.
E, para que conste, sou Dragão. Doente.
Francisco,
escudam-se no princípio (tão rigoroso e científico que parece marxista) de que o aborto é uma questão moral e que, como o estado não deve ter nada a ver com as escolhas morais dos indivíduos, não há, em conclusão, grande coisa a discutir.
Depreendo que entendas que o Estado tem que ver com as escolhas morais dos indivíduos. Mas então que escolhas morais dos indivíduos devem ser sujeitas ao controlo do Estado, e por que meios? Que sistema de valores propões?
Praticamente todas as leis (pelas quais o estado regula as nossas vidas e relações) foram elaboradas e densificadas a partir de regras tácitas e práticas reiteradas ao longo dos tempos, as quais assentam numa moralidade comum intrínseca. As (melhores) leis não traduzem uma erupção teórica e burocrática momentânea, mas sim um "dever ser" adquirido por uma determinada comunidade.
É uma visão que poderia ser subscrita por Hayek, que não deixaria de acrescentar que "uma determinada comunidade" está errada quando "adquire" ou "entende" leis erradas.
Por exemplo, (por absurdo), a proibição do divórcio era uma questão moral. E uma violência cívica, porque errada. Não existe tal coisa como "legitimação comunitária"— activamente, por defeito ou por omissão—, se o objecto da tal legitimação for ilegítimo. E nota que a própria noção que invocas de "dever ser", ou seja, um processo dinâmico, é incompatível com a visão estática "o que está, está bem, não se vai mudar". Precisas de um quadro orientador de valores, de princípios. E a "aquisição das leis" não é um princípio que te dê razão porque a comunidade pode "legitimar" o que consideras "errado" - o Estado "permitir" o Aborto...
escudam-se no princípio (tão rigoroso e científico que parece marxista) de que o aborto é uma questão moral e que, como o estado não deve ter nada a ver com as escolhas morais dos indivíduos, não há, em conclusão, grande coisa a discutir.
Depreendo que entendas que o Estado tem que ver com as escolhas morais dos indivíduos. Mas então que escolhas morais dos indivíduos devem ser sujeitas ao controlo do Estado, e por que meios? Que sistema de valores propões?
Praticamente todas as leis (pelas quais o estado regula as nossas vidas e relações) foram elaboradas e densificadas a partir de regras tácitas e práticas reiteradas ao longo dos tempos, as quais assentam numa moralidade comum intrínseca. As (melhores) leis não traduzem uma erupção teórica e burocrática momentânea, mas sim um "dever ser" adquirido por uma determinada comunidade.
É uma visão que poderia ser subscrita por Hayek, que não deixaria de acrescentar que "uma determinada comunidade" está errada quando "adquire" ou "entende" leis erradas.
Por exemplo, (por absurdo), a proibição do divórcio era uma questão moral. E uma violência cívica, porque errada. Não existe tal coisa como "legitimação comunitária"— activamente, por defeito ou por omissão—, se o objecto da tal legitimação for ilegítimo. E nota que a própria noção que invocas de "dever ser", ou seja, um processo dinâmico, é incompatível com a visão estática "o que está, está bem, não se vai mudar". Precisas de um quadro orientador de valores, de princípios. E a "aquisição das leis" não é um princípio que te dê razão porque a comunidade pode "legitimar" o que consideras "errado" - o Estado "permitir" o Aborto...
O aborto devia ser só decidido por cada mulher individualmente e sem sanções da maioria moral laica ou religiosa que ocorra estar no soi disant Poder.
Se uma mulher não quer ter um filho não vai querer criá-lo.
Todos os homens que falam em nome das mulheres quando se trata de decidir uma vida que só diz respeito a elas tem um ou vários cadáveres atravessados na boca.
Se uma mulher não quer ter um filho não vai querer criá-lo.
Todos os homens que falam em nome das mulheres quando se trata de decidir uma vida que só diz respeito a elas tem um ou vários cadáveres atravessados na boca.
Honestamente até hoje não consigo perceber como se pode achar a actual lei justa e equilibrada. A questão central que se discute é apenas e só uma: a partir de que idade se pode considerar um feto vida? Quem vota "não" considera que a vida existe deste o primeiro instante da gestação, quem vota "sim" normalmente considera que a união de duas células não pode ser equiparada a um ser vivo, a uma criança. Ora se se considerar que desde o primeiro dia o feto é um ser vivo, com os mesmo direitos que um bébé, então não percebo como se pode achar que a actual lei é justa, visto que é punido a morte de crianças deficientes ou filhos de violadores por exemplo, coisa que não acontece no caso dos fetos. Então em que ficamos? Ou é um ser vivo e se regride com esta lei, ou não é e se deve avançar com a despenalização. O meio termo é que não faz sentido.
O texto toca nos pontos essenciais, mas parte de uma catalogação errónea (pelo menos, parcialmente): a divisão não entre esquerda e direita, é "apenas" entre partidários e opositores à liberalização do aborto. Há muitas pessoas de direita pró-despenalização e muitas outras de esquerda contra a liberalização. Como eu (V. Exa. até me rotularia de extrema-esquerda, se me conhecesse).
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