O crime de aborto

(também publicado no blog da Atlântico)

Tiago,

Peço desculpa pela desilusão, mas a discussão em torno do pensamento católico tradicional e da sacralidade da vida humana não me diz respeito (infelizmente, acredita) e nem sequer me é muito familiar. Na questão do aborto, como já deves ter percebido, a minha perspectiva é outra. Aliás, reduzir o lado do "não" a um argumentário alegadamente beato é seguramente confortável, mas é igualmente não perceber a complexidade laica e jurídica do problema.

Quanto ao resto, concordo genericamente com quase tudo o que dizes, inclusivamente com o argumento de que "o Direito Penal, com a particularidade especialmente gravosa de lidar com a liberdade, se deve abster de conter incriminações que tenham por base imperativos puramente morais, devendo, uma vez que estamos numa Democracia (em princípio) pluralista, salvaguardar um espaço livre para modos de vida alternativos".

Mas fico aliviado por assumires que, para ti (assim todos o fizessem), o aborto é uma vulgar questão de costumes, de direitos e liberades das mulheres, de "modos de vida alternativos". Assim a discussão é mais transparente. Mais transparente e também, há que reconhecer, menos profícua, uma vez que não me parece haver grande espaço para conciliação entre essa opinião e a defesa de uma vida em formação, que é já mais do que um mero projecto.

[lembro-te apenas que o crime de aborto está previsto no Título dos crimes contra as pessoas (secção dos crimes contra a vida intra-uterina) e não no dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual]

A consequência necessária da tua posição é a de que tu não achas que o feto deve gozar de tutela penal (como goza de tutela civil) e, portanto, acharás que a mulher poderá abortar sem limites materiais e temporais (ainda não me respondeste a isto). Eu, pelo contrário, acho que o feto deve gozar daquela tutela. E não o acho agarrando-me ao pensamento católico tradicional (o qual, por deficiência de formação inteiramente a mim atribuível, desconheço largamente), mas sim a uma opção política que traduz uma determinada disposição (alguns dirão "oakeshottiana"), segundo a qual os aventureirismos são sempre de evitar e o dever da lei, do estado e dos seus representantes é em primeiro lugar para com aqueles que, no natural desenvolvimento progressivo do mundo, ficam para trás por insuficiência de defesas.

Comentários:
Peço desculpa, naturalmente, pela intromissão no diálogo, apesar de o tema abordado ser, digamos assim, de ordem pública.

A pergunta que coloco e que tem, mais à frente, desenvolvimento, é : o que têm a Igreja e a Justiça a ver com isto, quando, uma e outra, passam a existência a praticar monstruosidades, no emascaramento dos seus traumas, dos seus fantasmas e das suas toleiras?

De facto, a Humanidade pela-se pelo que não está próximo nem é visto, e só assim Deus pode resistir como figura de reverência. Para que fosse destituído, bastaria que, em vez do Filho, tivesse vindo Ele. Que não é burro. Ele joga, ameaça que espreita mas não se mostra, por saber que ninguém considera o que sabe que existe.

Pode levar-se a sério uma Justiça que, como quem desfolha mal-me-queres, sem tanta ingenuidade, decide, por extrínsecos interesses, o destino dos réus e das vítimas, podendo, até, porque dê jeito, não haver culpados?

Casa Pia: Fossem os crianças fetos, e não fossem, pedófilos, proeminentes figuras,
como é que o processo ficaria?

Entre-os-Rios: acabaram culpados, creio, a areia e o rio.Os únicos que não têm nem poder nem dinheiro.
As vítimas já tinham nascido, os seus fetos estavam acautelados.


Ou o NÃO ou o SIM!... Não há duas com três.
Por mim, há-de ser sempre sim, no País dos TALVEZ…


A questão do aborto não é uma questão de fé, e passa muito ao lado, ainda que em resultado, das ideologias meramente políticas, porque falamos, já, do direito à dignidade de seres para os quais, nascituros ainda, vão faltando condições, condignas, de espaço, ou com o espaço preenchido de todo o género de exiguidades: de princípios, de alimento, da pureza do ar e da água –que os altruístas trataram de engarrafar, temendo e desejando a seca–, de paz, de tempo e de afecto. Por quanto tempo mais encontraremos vestígios de seres saudáveis, de um Mundo em que existiu a alegria de viver?

E o que haveria, a Igreja de ter a ver com isto, se ela própria aceita as criaturas como estigma reflectido de pecado, seguindo indicações de um Deus que, esquizotímica, só ela vê e ouve. Que não é, certamente, o Deus que gargalha comigo, que lhes perdoa o facto de, ingénuos e perversos, confundirem tudo.

O aborto, a eutanásia e o suicídio não são mais do que o sinal, claro e evidente, de que há uma Espécie que, por falhas de gestão, deprimida, de depressão em depressão, autofágica, se vê a caminho de ser extinta.

Talvez –cá está ele— para a política, para a Igreja e para o materialismo, sejam, somente, os riscos que ameaçam o negócio. Para mim, são já os limites da resistência aos vários sofrimentos.

Se os poderes precisam de palhaços, que utilizem os ventres da família.

P.S.: eu não voto em coisa nenhuma, porque, raramente, é a essência que se discute.
 
Em 1984 legalizou-se o aborto em Portugal, mas os prazos dessa lei já foram alargados. Desde 1997 tornou-se legal abortar por razões de saúde da mulher até às 12 semanas ou até aos 9 meses no caso de perigo de morte ou grave lesão para esta, até às 24 semanas (6 meses) no caso de deficiência do feto, até às 16 semanas no caso de violação. Neste referendo propõem-se que a mulher possa abortar até às 10 semanas nos nossos hospitais e em clínicas privadas, com os serviços pagos pelos nossos impostos, sem ter que dar qualquer razão (por não estar contente com o sexo do bebé, por exemplo). Na verdade, trata-se duma legalização e liberalização do aborto.

A suposta solução dos problemas dum ser humano não pode passar pela morte doutro ser humano. Esse é o erro que está na base de todas as guerras e de toda a violência. A mulher em dificuldade precisa de ajuda positiva para a sua situação. A morte do seu filho será um trauma físico e psicológico que em nada resolve os seus problemas de pobreza, desemprego, falta de informação. Para além disso, a proibição protege a mulher que muitas vezes é fortemente pressionada a abortar contra vontade pelo pai da criança e outros familiares, a quem pode responder que recusa fazer algo proibido por lei. Nos estudos que existem referentes aos países onde o aborto é legal, mais de metade das mulheres que abortaram afirmam que o fizeram obrigadas.

MAS A MULHER NÃO TEM O DIREITO DE USAR O SEU CORPO?
A mulher não tem o direito de dispor do corpo de outro. O bebé não é um apêndice que se quer tirar, é um ser humano único e irrepetível, diferente da mãe e do pai, com um coração que bate desde os 18 dias, com actividade cerebral visível num electroencefalograma desde as 6 semanas, com as características físicas e muitas da sua personalidade futura presentes desde o momento da concepção.

Legal ou ilegal, o aborto representa sempre um risco e um traumatismo físico e psicológico para a mulher. Muitas vezes o aborto é-lhe apresentado como a solução dos seus problemas, e só tarde demais ela vem a descobrir o erro dessa opção. O aborto por sucção ou operação em clínicas e hospitais legais, provoca altas percentagens de cancro de mama, de esterilidade, de tendência para aborto espontâneo, de infecções que podem levar à histerectomia, de depressões e até suicídios.

E QUANDO UMA MULHER NÃO TEM CONDIÇÕES ECONÓMICAS PARA CRIAR UM FILHO?
Quem somos nós para decidir quem deve viver e quem deve morrer? Para decidir quem será ou não feliz por causa das condições no momento do nascimento? O destino de cada um é uma surpresa. Uma mulher com dificuldades precisa de ajuda, abortar mantê-la-á na pobreza e na ignorância, o que leva ao aborto repetido.

MAS TEM QUE SE ACABAR COM O ABORTO CLANDESTINO
É verdade, temos mesmo é que acabar com o aborto, que ninguém pense que precisa dele, mas a despenalização não ajuda em nada à sua abolição. Os números provam que em praticamente todos os países, após a despenalização, não só aumentou muito o aborto legal como não diminuiu o aborto clandestino, pois a lei não combate as suas causas (quem quer esconder a sua gravidez não a quer revelar no hospital, por exemplo). E às 10 semanas e meia regressa tudo à clandestinidade.

A diminuição do aborto passa por medidas reais e positivas de combate às suas causas, e não há melhor forma de ajudar o governo a demitir-se destas prioridades do que despenalizar o aborto.

O que importa é ajudar a ver as situações pelo lado positivo e da solidariedade, e não deixar que muitas mulheres se vejam desesperadamente sós em momentos extremamente difíceis das suas vidas. É preciso que elas saibam que há sempre uma saída que não passa pela morte de ninguém, e que há muitas instituições e pessoas de braços abertos para as ajudarem.

Uma mãe apanhada a roubar pão para um filho com fome não vai presa, precisa é de ajuda, e lá por isso ninguém diz que o roubo deve ser legalizado e feito com a ajuda da polícia. É importante que as pessoas saibam que matar um ser humano, dentro ou fora do ventre materno, é um crime, e por isso é, como todos os crimes, punível por lei. As penas têm um objectivo pedagógico (colaboração com instituições de solidariedade social, por exemplo), sendo a possibilidade de prisão, tal como no caso do crime de condução sem carta, considerado um último recurso. Mas só aos juízes cabe decidir, e porque eles têm em atenção as circunstâncias atenuantes, há mais de 30 anos que nenhuma mulher vai para a cadeia por ter abortado e a enorme maioria nem sequer chega a ir a tribunal.

O mais importante é ver quantas vidas uma lei salva.

PORQUE SE PROPÕEM PRAZOS PARA O ABORTO LEGAL?
Os próprios defensores da despenalização sabem que o aborto em si mesmo é um mal e que a lei tem uma função dissuasora necessária, por isso mesmo não pedem a despenalização até aos nove meses. No entanto, não há nenhuma razão científica, ética, ou mesmo lógica para qualquer prazo. Ou o bebé é um ser humano e tem sempre direito à vida, ou é considerado uma coisa que faz parte do corpo da mãe e sobre o qual esta tem sempre todos os direitos de propriedade. É de perguntar porque é que até às 10 semanas mulheres e médicos não fazem mal nenhum, e às 10 semanas e meia passam a ser todos criminosos...!?!
 
Caro Francisco,

O argumento que invoca, rejeitando, 'aventureirismos' nao e' mais do que uma forma de encobrimento e demissao argumentativa. Toda e qualquer iniciativa legislativa pode ser descrita como se se tratasse de um excesso revolucionario, mas se assim for Oakeshott e a disposicao conservadora passam a uma mera desculpa para o imobilismo. O imobilismo nao e' de todo ilegitimo, mas entao acho que devia ser consistente e demitir-se de toda e qualquer iniciativa politica transformadora, por mais gradual que seja. E' que se o aplicar selectivamente deve pelo menos explicar como e' que nos seus varios compromissos distingue entre aventureirismos, bom senso ou razoabilidade nas diferentes opcoes que vai fazendo.

Cumprimentos,
Joao Galamba
 
http://www.portinaoaborto.com/

aconselho todos a verem este flash!
 
Excelente resposta. Como bom cábula penduro-me neste post/resposta para responder a algumas das questões que o Tiago me tinha colocado mais abaixo.
 
Não sei se os diálogos que se observa acontecem entre pessoas descomprometidas ou pessoas tomadas pelos defeitos de profissão. Parece-me, à partida -sem, com isto, pretender ser pejurativo, quanto à ou às carreiras-, que o aborto se tornou numa conversa entre, no mínimo, oficiais de justiça à porta de um convento. Como se a Vida acontecesse e se desenvolvesse, pensada pela tiara papal e por decreto, e as leis, com falta de senso, não fossem, também elas, parte que deve ser acusada de males concretos.

Mas eu Percebo: ainda ontem, o António Lobo Antunes, quando lhe foi perguntado, pela Judite de Sousa, por que razão tinha sido mandatário de campanha do Dr. Mário Soares, respondeu que, tem muita dificuldade em dizer não a um amigo.

Na asequência, foi-lhe perguntado se votou. Respondeu que apenas votou algumas vezes, e que "muito sinceramente", nem sequer tinha lido o programa.

Depois disto, por que não haveria de discutir-se o aborto, e como poderia a discussão extravasar o espaço reduzido da justiça?

Por mim, prendam-nos a todos e continuem a discutir os parágrafos, as alíneas e os aditamentos. As pessoas esperam.
 
"penas" são as de quem as tem de verdade, os doentes, os mais pobres, os mais velhos, os deficientes. São penas de Vida! e mesmo assim não desistem e continuam a ensinar-nos que Vale a pena Viver!

http://www.youtube.com/watch?v=VhlqdEdY8gk

SIM PODEMOS! SIM VALE A PENA VIVER!
 





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