Correio dos leitores

"Por motivos profissionais, vivi em Paris durante uns meses, em 2005. Assisti, por isso, à celebração dos 30 anos da aprovação da lei Veil. As portas dos supermercados e os escaparates públicos foram, então, inundados por uns cartazes amarelos, cheios de balões, fitas coloridas e velas, com umas frases, a negro, a dizerem "Joyeux anniversaire!". Em caracteres menores, indicava-se o aniversariante (a aprovação da lei que legalizava a IVG), e convocava-se uma manifestação pública na praça do município para comemorar o evento. Fiquei chocada com o cartaz, que invocava, na minha opinião, um registo de inocência, com as cores e os motivos que normalmente se usam nos convites de aniversário das crianças, o que é profundamente irónico, tendo em conta a substância do que se pretendia celebrar. Tive curiosidade em seguir as reacções na comunicação social e o destino datal mobilização pública na Mairie. Na rádio e nos jornais, as figuras públicas e políticas relevantes debatiam a promoção da saúde pública, a liberdade e o reconhecimento dos direitos das mulheres, defendidos desde então por essa lei. Ocasionalmente, alguns políticos pronunciavam-se pelas limitações da mesma lei, nomeadamente porque o prazo para interromper agravidez, sendo mais curto em França do que em muitos países vizinhos, de fácil acesso, obrigava as pobres mulheres, algumas sem recursos, a viajar até à Holanda e Inglaterra, países com regimes ainda mais tolerantes do que a França. Importava, pois, rever a lei Veil no sentido de alargar o limitedas 12 semanas para o aborto legal, ou pelo menos, que o Estado fornecesse às mulheres ajuda económica que lhes permitisse custear as deslocações e a intervenção no estrangeiro. Achei interessante, contudo, no meu papel de observadora de uma realidade humana, cultural diferente da minha, constatar que os canais oficiais, comunicação social, partidos políticos e associações estavam mobilizadas para o assunto, comentando-o e celebrando-o até à náusea, o que contrastava com a relativa indiferença e mesmo apatia da população comum. No dia da tal manifestação, amplamente propagandeada pelas televisões e rádios, foi com desilusão que os mesmos media lamentaram a escassa mobilização popular para a mesma... tendo passado por lá (foi num domingo), observei um ajuntamento modesto, sobretudo de figuras típicas tipo as do nosso Bloco de Esquerda, com as suas barrigas escritas com slogans e cabelo em crista. Na altura, transmiti ao meu marido, que ficara em Portugal, a minha apreciação sobre os episódios a que assistira: um discurso oficial, formalmente democrático, e pró-humanista, em completo desacerto, na sua excitação de celebrar a lei, com a apatia e indiferença da população. Não estou a dizer que as pessoas que faltaram à manifestação sejam contrárias à aplicação da lei do aborto. Pelo contrário, estou convencida, a avaliar pelas estatísticas, que a encaram como um ganho, um benefício, um privilégiopróprio das nações desenvolvidas, al nível do direito às férias pagas, osubsídio de Natal, de desemprego ou mesmo o SMIC...a indiferença e aausência de espírito crítico instalam-se quando as leis, neste caso a lei que liberalizava a interrupção da gravidez, deixam de corresponder a uma real e efectiva promoção do homem e do seu desempenho na sociedade. Perdida este fito de "caminhada ascendente", educativa porque as leis e as sociedades se devem reger, (ou seja, tornar os homens melhores hoje do que foram ontem), está aberto o caminho para toda a brutalidade, anomia, relativismo, para o encarar como natural exigir a um Estado que, já que reconheceu a IVG como legal até às doze semanas, vá, lá, mais um esforço, mais uma vela no bolo, porque não mais duas semanas....E, por isso, um cartaz festivo de festa de aniversário não choca, nem desperta qualquer reacção diante da gritante ironia que esconde, tal como, no Ocidente rico e anafado que testemunhei em Paris, não choca que um casal em divórcio se enfrente no tribunal pela tutela do petit chien, ou que a madame vá ao supermercado, e coloque o caniche no carrinho, levando agarrado por uma trela peitoral o petit gamin... Tenho seguido o vosso blog. Sou mulher, sou doutorada, sou casada, tenho dois filhos, e não aceito o maniqueísmo dos partidários do sim quando dizem que estão a defender os direitos das mulheres, ou que a sua posição está fundamentada pelo avanço da civilização, da informação, ou da cultura."
Paula Dias

Comentários:
Ninguém, de bom senso, aceitará o aborto, a eutanásia, a geriatrodeposição -ocorreu-me o neologismo- e o suicídio como reflexo da evolução de quaisquer sociedades A morte, "tecnicamente" provocada, e a inibição do nascimento e desenvolvimento das criaturas serão, sempre, sinais de regressão -pelos trâmites do Instinto- de uma Espécie que hipotecou o Pensamento ou o desgastou no investimento exclusivamente tecnológico. A Humanidade -como um palhaço, aparentemente, rico e, de facto, sem graça- condenou-se a fazer figuras melotrágicas.

Faz recurso à bebida e às drogas, para compensar lacunas. E chega a rotular de "caretas" os que, "a seco", enfrentam e tentam a resolução dos problemas, para que estes não se radiquem e não aterrorizem as almas que devem, o mais possível, estar limpas.

O afecto, ou as suas ausências, é vingado com piercings, em automutilação difícil de aceitar por qualquer paciência, muito embora, seja um assunto fácil de compreender.

Chamar evolução a isto?!... Há os que chamam, à decadência, colateralidade; efeito secundário, que não é resolvido com placebo, porque, embora psicológico, no princípio, o fenómeno chegou a níveis que não deveria.

Lutam contra a droga e destacam corpos policiais para protecção de concertos em que as "bandas" estão todas drogadas;

Sabe-se da incidência de tumores cerebrais pelo uso -pelo menos, o excessivo- de telemóveis, e deixa-se, às crianças, o uso e o livre arbítrio dos ditos;

Pretendem acabar com a corrupção e disponibilizam os lugares, de influência e de decisão, só em jogos corrompidos pelos interesses...

A Humanidade -quer se queira, quer não- é assim. Paris -como todas as terras, é apenas um ventre. Os "embriões" é que são esquisitos, e o mundo, o nosso mundo, é somente fictício, porque nascemos fruto de um deus de incoerências.

P.S.: Se em Abril desabrocharam esperanças –o termo tem o seu “quê” de pós-erótico, e os ingénuos colheram-, foi por acção da “esquerda” que murcharam. Os falsos e os famintos quiseram comer tudo. Quem é que, humilde, livre das traições do imaginário, se lembraria de comparar uma labita para receber o prémio Nobel?
 
sobre COMUNICAÇÃO, agora.

Um erro crasso, pensar que a Comunicação Social, em regra, está interessada em discutir, desinteressadamente, os assuntos. Acontecerá à Comunicação Social o que vem acontecendo com essa mistura de oligarquia e plutocracia, o verdadeiro regime em que se vive, sem palavra única -em qualquer lado-.

Democracia é hipocrisia. E é por isso que a abstenção tem vindo a aumentar o seu significado, do mesmo modo que os orgãos de comunicação vão perdendo audiências, porque a credibilidade ou se alimenta ou se esgota, e, como tudo termina, normalmente, em negócio, todos "gingam" e todos querem e todos esperam um parceiro no qual possam ter confiança. Mas quem é, hoje, que, não sendo ingénuo, não desconfia?

O caos é o grande investimento da Informação. Associa-se-lhe, provoca-o e acolhe-o -como o instinto aconselha-, porque é a confusão que aterroriza e dispersa a manada e que permite aos predadores isolar e sufocar as presas.

Já perguntei, num outro comentário, que seria das instituições, se as sociedades se tornassem perfeitas? E perguntei, noutros contextos, que haveria de ser da desgraça, se deixasse de haver desgraçados?

A ordem das prioridades foi alterada. A necessidade de informar é que é o mote. As notícias são pouco menos que fabricadas. A luz é um obstáculo, porque é na escuridão que os ratos medram.

A seguir ao aborto, como tema, outro se há-de seguir -como este sucedeu a outros-, sem que haja nem tempo nem disposição para aprofundamentos. A Casa Pia já foi! A Comunicação exaltou-o e deixou-o nos estertores do êxtase, porque há notícias que não dão dinheiro, porque já cansaram e porque não dão jeito.

Paris tem que lembrar romance, e não os problemas em que sobrevive esta terra. Acreditem que o negócio é o mesmo, mas o Père-Lachaise é diferente.
 





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