Direito a ser desejado?

Lê-se no Público on line de hoje que «Os Médicos Pela Escolha, também favoráveis à despenalização do aborto, realizaram este fim-de-semana mais uma acção de formação interna» em que «discutiram a questão da vida humana, colocando a tónica no "direito de uma criança a ser desejada"».

Daqui retiram-se duas conclusões:
1.ª - Que estes "Médicos Pela Escolha" reconhecem a vida humana do embrião.
2.ª - Que para estes Senhores a tónica da questão da vida humana se coloca no direito a ser desejado. Querendo com isto dizer, aparentemente, que é legítimo acabar com uma vida humana se ela não for desejada.

Ora, este raciocínio, onde se reconhece a vida humana do embrião, enferma de vários vícios, propositados, ou não, que me suscitam as seguintes questões:

1.- A que título é que a violação do direito a ser desejado pode dar origem à permissão de que se fira o único direito cuja lesão é verdadeiramente irreparável, ou seja, a vida? Será lícito atribuir um direito menor (ser desejado) para justificar a lesão de um direito maior (a vida que se reconhece ser humana)?

2.- Se de facto defendem a existência do "direito de uma criança a ser desejada", deveriam igualmente defender o correlativo "dever de a desejar", uma vez que um direito dessa natureza só pode ser satisfeito por outrem. A quem caberia esse dever de desejar? Que sanções para a falta do seu cumprimento?

3.- Será que tal direito a ser desejado existe verdadeiramente? Ou trata-se somente de entender que seria desejável que todos fossem desejados? Será que o direito pode impor a alguém que deseje?

4.- Será que o que está aqui em causa não é, mais uma vez, única e exclusivamente a perspectiva da mãe que aborta e que se arroga o "direito de não desejar o filho"?

5.- Será que o direito, apesar de não poder exigir que a mãe deseje o filho, não deverá impor que ela suporte esse incómodo (que é real, não o nego) em nome do direito à vida humana do filho que até os "Médicos Pela Escolha" reconhecem existir?

Comentários:
Eu não gostava de ser filha de alguém que não me tivesse desejado. Se tal tivesse acontecido, preferia não existir.

Também preferia não ter sido filha de alguém que morreu para eu nascer... Continuava a preferir não ter eu existido (e isso aconteceu).

Não sou pelo Sim, por uma questão de comodismo da Mãe (ou do Pai, ou dos dois)... Sou pelo Sim, pelo feto que, acredito, escolheria não existir, a existir com o peso de não ser completamente amado.

Porque mais vale morrer antes de se ter consciência, que viver a meio gás.

Como é possível supor, sequer, que um ser humano prefere nascer para ser adoptado que nem sequer ter tido consciência de que um dia existiu enquanto feto...

Defender a Vida desta forma cega chega a ser de uma crueldade sem fim para a criança que entretanto nasce (que façam do aborto um método contraceptivo... se isso evitar que existam crianças cujos pais não merecem tê-las).

Uma criança infeliz, uma lágrima a correr numa face rosada, a solidão no mundo dos adultos, é muito pior que um feto aspirado por um qualquer utensílio médico.

Não me parece difícil entender isto... basta sentir um bocadinho!
 
Caro anónimo,
Agradeço a clarividência. Expôs com a crueza que se impõe, aquilo que liminarmente rejeito. Porque os pais as não merecem ter, têm as crianças de morrer?
Normalmente houve-se dizer que são os do "não" que pretendem impor a sua maneira de pensar aos outros, não é? Os seus anquilosados valores morais. Pois é. Mas como este anónimo preferia não viver a não ser querido pelos pais (ele lá saberá porquê) acha legítimo que morram outros...

Em vez de pensar em crianças infelizes, em lágrimas a correrem em faces rosadas, imagine o sorriso feliz de uma criança que, muito embora não tenha sido querida pelos pais, encontrou o amor numa família que fizeram sua. Mas se quiser, olhe para a tristeza de uma criança e diga-lhe, olhos nos olhos, "devias não ter nascido, coitado de ti". E já agora, aproveite o embalo e encolha os ombros quando vir pais que não merecem os filhos... que pena terem nascido, será já tarde para lhes aliviarmos o sofrimento de uma vida inteira?

Numa coisa estamos de acordo: Não me parece difícil entender isto... basta sentir um bocadinho!
 
Anónima: Por favor pare de ver a vida como uma aguarela da Sarah Kay pintada por si. Tenha a coragem de se perguntar a si mesma se, aplicando liminarmente o seu próprio raciocínio, era capaz de matar uma criança de 1 mês, caso não fosse desejada. É disto que se trata. E se o Sim ganhar, será graças a pessoas como Você, bem-intencionadas, mas que se permitem matar alguém, se essa morte ocorrer longe dos olhos, e por motivos cor de rosa.
 
Cara Anónima,

Obrigada pelo seu testemunho. Fiquei sinceramente tocada ao lê-lo.

Se diz que, por amor, preferia não ter nascido a causar a morte da mãe que a deu à luz, está a demonstrar um sentimento de uma nobreza de que poucas pessoas são capazes.

O que escreveu comprova que não são os bons do lado do não e os maus do lado do sim. Não é uma questão de bons e maus.

Acho é que, com a melhor das intenções, está a laborar num erro que é o de partir do princípio de que as condições (afectivas, económicas, sociais...) que se verificam no período da gravidez se mantêm inalteradas ao longo da vida.

A experiência demonstra que não é assim: pessoas que aparentemente nasceram com todas as condições para serem felizes têm uma vida miserável e vice-versa.

Penso, ainda, que está a subestimar uma característica do ser humano que faz parte da sua essência: a capacidade de se superar, de se transcender.

A felicidade passa muito mais por nós próprios, pelas relações que conseguimos construir, do que pelas circunstâncias em que vivemos e que nos são exteriores.

Há pessoas muito felizes em África que vivem em condições que nós consideraríamos miseráveis. Isto porque têm outra forma de encarar a vida. Chama-se a isto esperança.

Nós não temos a chave da vida. A única forma de sabermos como ela é tem de ser vivendo-a.

Ora, o sim ao aborto, ainda que por compaixão, acaba com uma vida, única e irrepetível, que nós não temos meio de saber como iria decorrer.

Mais, acaba com a esperança de que o que é negativo hoje possa ser melhor amanhã.
 
Cara anónima:

Sinto-me na necessidade de fazer três pequenas adendas ao meu comentário anterior, que preferia que ficassem apenas entre mim e si. Mas na impossibilidade de assim ser, antes públicas que omitidas:

- peço desculpa pela crueza com que me exprimi. O ponto 3 talvez a explique, sem a desculpar.

- o seu caso pessoal, desde que comecei a ponderar estas coisas em 82, é o único que não me oferece a mínima dúvida. Abençoada a mãe que tal acto de abnegação pratica, e a lei deve, quanto a mim, consagrá-lo claramente (embora, provavelmente, não fosse preciso, visto que qualquer juiz, aplicando a lei geral, nunca aplicaria uma pena neste caso, se é que não era arquivado previamente);
- eu e a minha mulher adoptámos há muito pouco tempo uma criança. Não posso sequer conceber a hipótese que Vc põe: «Como é possível supor, sequer, que um ser humano prefere nascer para ser adoptado que nem sequer ter tido consciência de que um dia existiu enquanto feto...» Não consigo conceber que o meu filho pudesse ter tido esse destino, por não ser desejado e/ou os seus progenitores não terem tido meios para lhe darem uma «vida digna». Ele já teve 10 semanas de gestação, já esteve nas condições em que a lei prevista pretende autorizar o aborto, e não estamos a falar doutra pessoa, estamos a falar da mesma. Que terá um futuro, que tudo faremos que seja feliz.

Em conclusão: respeito a sua circunstância pessoal, mas exorto-a não deixar que ela a leve a um mal maior sobre crianças - crianças - privadas de se defender, e com um futuro pela frente, o qual nenhum de nós tem o direito de cortar pela raiz, nem que seja com a melhor das intenções.
 
O meu comentário foi um texto de experiencia feito (ou, como se costuma dizer, um desabafo!), não me imaginei a responder, mas não resisti e cá vai:

Cara Marta,

Estamos de acordo. Existem boas pessoas de ambos os lados! Obrigada e nada mais a dizer.

Caro Nuno Pombo,

Para si, apenas uma pergunta: Eu sinto! Você sente ou limita-se a teorizar?

Caro Jorge Lima,

"Tudo faremos para que seja feliz". A si não o conheço, o que é que fez para que eu fosse feliz?

Se quiserem, podem sempre dirigir-se a mim como a voz off dos fetos que preferiam não ter nascido sempre que se lembrarem de dizer umas coisas abstractas e inconsequentes.

Espero, no entanto, que entendam que me falta a frontalidade e a coragem para assumir o nome, quando venho para aqui dizer que, enquanto feto, preferia não estar cá!

Obrigada.
 
Cara Anónima:

Percebo perfeitamente que preserve o seu anonimato. Eu faria provavelmente o mesmo. Quanto ao seu comentário a "Tudo faremos para que seja feliz.", referia-me ao meu filho. Em relação a si, naturalmente, só posso desejar-lhe o mesmo. Um abraço.
 
Cara anónima,

Para mim não foi apenas uma pergunta. Foi também, e primeiro, uma exclamação. Eu também sinto, acredite!

Não vou cometer a injustiça de achar que está só a teorizar, a navegar no abstracto. Não vou por aí. Acredito que esteja sinceramente convencida da bondade da sua posição. Para mim ela não é senão uma das mais representativas posições dos adeptos do "sim". E já aqui defendi que considero que posições como a sua são, nas suas causas, generosas, ainda que, nas suas consequências, devastadoras e indiscriminadamente atentatórias da vida humana. Só por isso, sinto, sinto mesmo, que as devo rechaçar.
Obrigado
 





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