Do uso táctico da metafísica

O nosso camarada Jorge Ferreira diz aqui em baixo que não vale a pena criticar Odete Santos e Francisco Louçã pelos seus "projectos políticos". Basta deixá-los falar e a vitória é certa. Com todo o respeito, permito-me discordar. Por duas razões.
Primeiro, porque a defesa da liberalização do aborto pela extrema-esquerda é uma consequência directa de uma filosofia errada, uma filosofia em que o homem é um meio e não um fim. O exacto oposto do personalismo em que pelo menos o PSD e o CDS alardeiam inspirar-se. Quem se der ao trabalho ir para lá da retórica costumeira da "hipocrisia da direita" e dos "direitos das mulheres" verá que, por trás dela, a apologia do aborto é meramente ideológica e não tem qualquer relação com as pessoas reais. Caso contrário, o amor à humanidade do PCP e do Bloco estender-se-ia aos dissidentes cubanos e às vítimas da ETA. Talvez não seja má ideia lembrá-lo, tendo em conta a frequência com que esses modelos de virtude usam a autoproclamada superioridade moral e a proclamada "hipocrisia" do outro lado como argumento.
Além disto, que já não é pouco, há um aspecto táctico menos óvio. Nem toda a gente reparou ainda que os três partidos de esquerda não defendem a mesma coisa quando defendem a liberalização. Há aqui muitas hipóteses de que a muralha vermelha e rosa abra brechas, desde que alguém aponte a artilharia para os pontos fracos.
Vejamos dois exemplos.
Parece haver um certo consenso no PS de que o aborto não é um direito fundamental, mas uma solução de último recurso. Para o Bloco, em contrapartida, o aborto é o direito de "mandar na minha própria barriga", como mostram, exibindo as ditas, as lolitas de combate que o partido faz avançar para a primeira linha nos sempre oportunos julgamentos. O PS está de acordo com o Bloco?
Do mesmo modo, parece haver um certo consenso no PS de que o aborto não pode ser visto como um método contraceptivo. Ora, para o PCP, o aborto não é outra coisa senão um meio de impedir as mulheres pobres de ter filhos (ou todas as mulheres, quando todas as mulheres são pobres, como na China, na União Soviética e nos nunca de mais lembrados paraísos socialistas). O PS está de acordo com o PCP?
Chamem-lhe dividir para reinar, mas eu não sou monárquico: basta-me ganhar o referendo.

Comentários:
Começa a falta de higiene e o atirar de lama político. Queira saber o senhor que há muito boa gente de "extrema-esquerda" (queira isso dizer o que entendeu qdo o escreveu no seu post) que votará não, como pessoas de direita vão votar sim, porque o mundo não é feito a preto e branco / a vilões e heróis.
Diabolizar o outro lado é um truque baixo, vindo do lado do não ou do sim. Portanto, porque não discutir o assunto sem juízos de valor sobre cada uma das partes e muito menos sobre partidos políticos?
 
Sim, admito que apresento aqui uma imagem excessivamente monolítica da esquerda. Mas isso não é diabolizar. À esquerda, todos os partidos fazem campanha oficialmante pelo sim, colocando em campo os respectivos dirigentes (e até, no caso do PS, o próprio Primeiro-Ministro). Não se passa o mesmo com o PSD e até com o CDS, bastante dividido na matéria. É possível que haja gente na extrema-esquerda (PCP e BE) que vá votar não, mas não conheço ninguém. Pode dar-me exemplos? Em todo o caso, o que pretendia mostrar é que por trás desta aparente unidade há diversas visões do aborto nos partidos e que isso é um factor de divisão a explorar. A frente de esquerda pode ser derrotada por aí. É a esta sugestão que chama atirar lama para cima do sim?
 





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