IVG: recolocar a questão moral

Há quem coloque o fulcro moral da questão da interrupção voluntária da gravidez (IVG) apenas no plano da consciência de cada um; a Lei e o Estado deveriam deixar essa questão à decisão moral dos indivíduos, para o que a liberalização se tornaria necessária. Esta solução seria alegadamente a mais correcta em termos morais porque confrontaria cada um com um exame de consciência do qual emergiria uma escolha mais verdadeira e autêntica. Como defenderei num post seguinte, uma das fraquezas dessa posição é que ela só seria real para as mulheres.

A objecção que para já coloco a este modo de ver o problema da IVG é que essa posição não é admissível se estiver em causa a defesa da integridade de outra pessoa além do agente moral (quem toma a decisão). É por isso que, em nome dessa suposta correcção moral, não se defende a descriminalização de condutas atentatórias daquela integridade: ninguém diz “vamos descriminalizar a agressão física porque é mais saudável viver numa sociedade em que as pessoas tomam decisões morais genuínas e não porque a lei e a polícia as obrigam a isso”. O argumento da liberalização, que entrega aos indivíduos a responsabilidade plena dos seus actos, é, para mim, válido para a totalidade dos comportamentos comuns das pessoas que só as afectam a elas próprias; nesses casos, de facto, a lei e o Estado não se devem imiscuir. Pelo contrário, sob a alçada do Direito (e dos tribunais) ficam as regras recíprocas de justa conduta que permitem aos indivíduos conviver sem se agredirem nos seus direitos essenciais – sendo que o seu direito essencial primeiro é o de gozarem de toda a liberdade em relação aos comportamentos que só os afectam a si próprios.

Ora, é para mim claro que a IVG afecta, isto é, interrompe por acto deliberado de segundo ou de terceiro, a vida de um ser humano – que tem, assim, a sua integridade violada de forma absoluta. E é por isso que, no meu entendimento, a IVG não está no plano dos actos morais que pertencem à responsabilidade plena do indivíduo, mas, pelo contrário, está sob a alçada do Direito e das garantias de que este deve cercar a integridade de cada ser humano. (É também por isso que a IVG pode ser admitida se uma gravidez colocar em perigo a integridade – a vida – da mãe, ou se essa gravidez tiver resultado de um acto que violou essa integridade.)

Comentários:
Poderá dizer-se que a flor e o fruto não pertencem à árvore, partindo do princípio de que, um e outro, sendo-lhe afectos, sazonalmente, são elementos autónomos que se hão-de desprender rumo ao apodrecimento?

É nosso, segundo a Lei, tudo o que nasce nos nossos terrenos. Por quê, discutir a propriedade do ebrião ou do feto, se se admite que nos vendam a água? A quem pertencem os ventres de onde brota? Com que legitimidade a sequestram e a estragam e lhe decidem a utilização e a utilidade?...

Se se quiser discutir o direito de propriedade, percebemos que o senso -sobrepondo-se à Lei como mero istrumento do interesse humano- informa-nos de que ninguém teria nada. Seriamos, apenas, usufrutuários, porque toda a acumulação é usurpada -porque acham que a corrupção não não pode ser eliminada?-. Há a "amígdala", o cortex... e o tálamo.

Para que se perceba quanto o ebrião pertence ao ventre, basta que saibamos quanto o primeiro do segundo depende: a estadia, o alimento; o aproveitamento de toda uma estrutura que -a reciprocidade existe- também lhe pertence: porque é aquele embrião e não outro; por que é aquele ventre e não outro qualquer. São as afinidades geneticamente exclusivas que determinam ou legitimam a ideia de que, um e outro, se pertencem, numa pertença, como tudo, efémera.

Sabe-se, porque existe a sensação de pertença -o Instinto de Posse é o "decorador" dos espaços habitados pelo Instinsto de Sobrevivência-, que, depois de nascidos, continuam, os filhos, a cumprir ordens e a ser sujeitos a vontades que lhes são alheias. O futuro que os pais observam é, por muito desprendimento que os pais tenham, o futuro que os filhos devem ver -enquanto estiveres cá em casa!!!!-. Acrescenta-se, normalmente, para suavizar ou reprimir o "despotismo", a locução advervial "pelo menos".

Com que direito fazem os pais isto? Porque, de facto, os filhos foram-lhes entregues e dependem -para o bem e para o mal- do seu sustento e dos seus juizos.

Quando digo que defendo o "sim", não assumo como atitude objectivamente política -eu nem voto, porque não acredito-. Faço-o, porque todos nos apropriamos ou, pelo menos, queremos algo que não nos pertence.E se há modo de obstarmos à concretização das vontades, não há modo de evitarmos as vontades-mesmo.
 
Com o devido respeito, não há vida nascida ou por nascer. Há estádios -formas, se se quiser- de uma Vida que sempre existe, por ser o Tempo, com os seus fenómenos, que mantém e recicla a matéria.

Os espermatozóides humanos não são menos pessoas, tal como a semente de qualquer árvore não é menos árvore. É verdade que espermatozóide e semente carecem da cumplicidade de contextos para chegarem a indivíduos formados, mas ambos são, já por si, essência, como o ovo é ja a larva e a borboleta que pode nem nascer, mas que teria, se nascesse e se desenvolvesse, um único destino: ter asas

A única diferença é que apenas conhecemos ou temos, mesmo, afinidades com a "hospedeira". Nunca ninguém conviveu com o embrião ou com o feto. Razão por que já escrevi, noutra altura, que me choca, isso sim, que, ao fim de 20 ou 30 anos de convívio, hajam filhos que se desfaçam dos pais; que os "depositem" a distância segura que os não ipeça, mas que também compreendo, porque as razões não são muito diferentes: é a luta pela sobrevivência numa sociedade propensa aos números e alérgica aos afectos -quem pára para amar, amadurece, mas, socialmente, não caminha.

Nunca nem ninguém privou com embriões ou fetos, porque eles SÃO A VIDA com quem nunca trocamos experiências ou ternura.

Se, numa posição adversa, num momento em que a minha mulher se visse confrontada com a possibilidade de morrer durante o parto, por que só haveria a hipótese de sobreviver um, e me fosse colocada, estupidamente, digo, a decisão da escolha, responderia, irónico -porque era o que a pergunta me pedia- que não conhecia o bébé de lado algum. Era a minha mulher que eu conhecia e com quem teria partilhado momentos que os registos da memória assinalavam. A não ser que a nossa realação fosse inapropriada, degragada, e estivéssemos -como, infelizmente, acontece-, cada um, à espera que o outro morra e o "amor" ao filho fosse o excelente pretexto.

É a afectidade que decide a moral e freia a Lei, porque só nos agradam ou desagradam as coisas e os seres com que se convive.

A Lei, de afectos, pouco ou nada percebe. As conveniência são mais o seu terreno. Há pessoas, sim, ligadas à Justiça, que mereceriam um melhor universo.
 
Parabéns pelo blog, mas faz-me confusão que se reduza a palavra "Aborto", com todas as implicações negativas que tem, a uma sigla: "IVG". É uma tentativa de usar o politicamente correcto, ainda por cima com uma sigla mentirosa, porque o aborto é um término, e não uma interrupção, porque a vida que foi destruída não poderá ser retomada.

Claro que custa mais dizer aborto do que IVG, mas a dessensibilização desta questão é o que faz com que o aborto, matar uma criança, pareça um mal-menor a comparar com as "complicações" que essa vida pode trazer à nossa vida.

Matar é fácil, e quase toda a gente o faria, quando não se vê o outro, não se sente a sua dor, e dessa morte pode vir algum benefício.
 
Cara Alice, percebo a sua objecção e não tenho a certeza de lhe poder dizer que não concordo. Mas, numa situação dessas, se a decisão não pertencer à mãe, é de uma violência para mim insuportável que o Estado a quisesse obrigar a prosseguir a gravidez.

Caro Rodrigo, apesar da sua escrita tão rendilhada, parece-me estar a defender o direito de propriedade dos pais sobre os filhos. E isso é coisa que recuso liminarmente. Os pais são fiéis depositários, nada mais. Aliás, se a sua analogia fosse aceite, poder-se-ia estender a toda a sociedade ("o que somos nós sem os outros?")e suportar um sufocante colectivismo...
 
Luis, o que eu digo, no meu texto, não é que os os filhos devem ser -até porque, como sabe, nunca seriam- propriedade dos pais. O que eu faço -por favor, confirme- é usar uma analogia, alicerçada na prática diária, para manifestar a incoerência, que me parece, resultante da pretensão de negar, à mãe, a propriedade do embrião ou do feto, quando, repito, apenas por analogia e por constatação, que a generalidade dos pais age como se os filhos fossem sua perteça. Sabe que, ainda hoje, há namoros impedidos ou dificultados, porque o rapaz ou a rapariga não obedecem ao que uns ou outros pais, como futuro, projectaram.

Na verdade, até na condição de filhos, agimos, tantas e tantas vezes, como se os pais nos pertencessem e nos devessem todas as audiências.

Nós somos, como muito bem defende,e eu penso já ter escrito, usufrutuários. Que se comportam, muitas vezes, como se aquilo de que usufruem seja propriedade sua.

O "rendilhado"da escrita advirá, talvez, do prazer que tenho em escrever; do gozo estético, da cadência, porque gosto de ouvir-me, quando e enquanto escrevo. Se for defeito, paciência, porque é o que procuro, quando leio -independentemente do tema, naturalmente-.

cumprimentos
 
Como é que V. defende simultaneamente que o Direito deve proteger o nascituro - presumo que desde a concepção, embora não o diga expressamente - mas já não o deve proteger se a sua "criação" tiver resultado de um acto contra a vontade da mãe - a violação ?

É capaz de me explicar porque é que o direito à vida do nascituro, que V. acha que deve ter tutela penal, cede perante a agressão sexual da mãe ?

Postas as coisas de outra forma, porque é que V. acha que se pode matar o nascituro - são as suas palavras - que em nada contribuiu para a agressão sexual da mãe ?
 
Anónimo das 0:45,
O LAS responderá bem melhor do que eu, mas deixe-me que lhe diga que o facto de a lei consagrar excepções quanto à punibilidade, não significa que esteja a retirar a respectiva tutela penal. O que a lei faz é consagrar as denominadas causas de exclusão de culpa. Faz no aborto como faz em todos os outros crimes.
É que para haver crime tem, necessariamente, de existir um facto ilícito e culposo. Não existindo um destes pressupostos o facto não poderá (nem deverá) ser penalizado.
 
Rui Castro, V. finge que arrranha umas coisas de Direito Penal, mas leu mal os manuais, homem.

Explique lá direitinho se é o facto ilícito ou a culpa ou os dois que faltam no aborto realizado após violação e porquê. Mas explique mesmo, não se limite a dizê-lo como axioma.

E, já agora, explique lá direitinho que razão moral, ética ou outra justifica que se mate o nascituro por uma ofensa sofrida pela mãe ?
 
Anónimo: Aborto é sempre um facto ilícito - tirar a vida a outrem. Só é punido se for praticado com culpa. Quem decide se o agente do crime praticou o aborto com culpa é o juíz, tal como para todos os crimes previstos e tipificados na lei. Por que razão há-de o legislador estabelecer o princípio de que o aborto é sempre praticado sem culpa, retirando-o da parte "especial" do Código Penal (é a parte do Código onde são definidos os factos que constituem ilícito penal).

Defende que o legislador no crime de furto estabeleça que, caso o mesmo seja praticado com a finalidade de dar de comer aos descendentes do agente do crime, o mesmo deixará de ser crime?

A nossa lei penal já contém em si todos os mecanismos necessários para resolver os casos de aborto que agora são dados como exemplo para a liberalização.

Discutir a questão do ponto de vista jurídico como se o sistema não lhe desse resposta é hipocrisia.
 
id,

V. ainda arranha menos de Direito Penal do que o Rui Castro.

Ainda nâo percebeu que certas formas de aborto não são facto ilícito, nem sequre crime ? E que, justamente por isso, nem sequer chegam à fase da decisão judicial sobre a ilicitude e a culpa ?

Leia a lei actual, rapaz !
 
Anónimo: que cabecinha tão confusa... esses casos que refere de aborto que não são tipificados pelo legislador como ilícito, são aqui chamados para quê?

O que eu disse e você não quer perceber, mas que passo a explicitar para os de má vontade, é que para os casos que continuam a ser previstos como ilícitos penais (na parte especial) se aplicam as causas de exclusão da culpa previstas na parte geral e que o Juiz fará aplicar ou não (como de resto faz para todos os crimes).

PS: eu li a actual lei, meu caro, e como vivemos num país democrático e livre, reservo-me o direito de interpretar a lei como expus. Não concorda comigo e com o Rui Castro, paciência... mas mantenha o nível da argumentação...
 
Manteria o nível de argumentação se V. a tivesse inteligente, o que manifestamente não ocorre.

V. escreveu, em 7/11:

Aborto é sempre um facto ilícito - tirar a vida a outrem. Só é punido se for praticado com culpa.

V. escreveu também, em 9/11:

esses casos que refere de aborto que não são tipificados pelo legislador como ilícito.

Não se trata de interpretar a lei, trata-se de ler a lei, primeiro, de evitar escrever duas coisas diferentes sobre a dita, com dois dias de intervalo, depois, e de responder à pergunta que eu fiz em 6/11 e de que V. foge como o Diabo da Cruz:

"Explique lá direitinho se é o facto ilícito ou a culpa ou os dois que faltam no aborto realizado após violação e porquê."

Ao menos o Rui Castro teve a decência de se calar...
 
Ainda estou è espera ...
 





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