Lei, moral e aborto: razões para o Não

O tratamento legal a dar ao aborto não é uma questão fácil para um liberal.

Se o que está em causa fosse exclusivamente uma avaliação do aborto no plano moral, essa dificuldade em larga medida não existiria. Classificar como uma falha moral grave a eliminação da vida de um ser humano inocente não deve ser tarefa complexa para quem reconheça a existência de um direito inalienável à vida por parte de todos os seres humanos inocentes. É certo que, como aliás sempre acontece neste tipo de matérias, as circunstâncias particulares de cada caso podem tornar humanamente compreensíveis (ainda que não moralmente aceitáveis) algumas decisões de abortar. A complexidade da realidade e a inevitável imperfeição humana, também (ou antes de mais) no plano moral, levam a que todos possam incorrer em falhas. No entanto, a compreensão em concreto dos motivos de alguns abortos não altera o facto de que provocar voluntariamente um aborto constitui, pelo menos na esmagadora maioria das situações, uma falha moral grave.

Já quando o que está em causa é o tratamento legal a dar ao aborto livre, não basta demonstrar a imoralidade intrínseca da prática. Não obstante a inequívoca existência de uma profunda interligação entre Moral e Direito, há um grande número de actos imorais que não devem merecer sanção legal. Acresce ainda que pretender atribuir ao Estado a "tutela" moral da sociedade por via legislativa potencia o abuso de poder e coloca em perigo os direitos individuais e a própria ordem social. Numa perspectiva liberal, as condutas moralmente censuráveis só devem ser sancionadas juridicamente quando atentam contra os direitos de terceiros. Daí que seja para mim compreensível que um autor como Rothbard - que equipara um feto indesejado a um "parasita" - considere legítima a sua eliminação por parte da mãe.

Apesar de discordar radicalmente da posição de Rothbard (por considerar absurda a classificação de "parasita" atribuída ao feto), considero-a a única defesa internamente coerente da legalidade do aborto livre: se um feto humano pudesse ser visto como um "parasita" que se alojou ilegitimamente no corpo da mãe, então a expulsão desse invasor não deveria ser legalmente condenável. A eliminação do feto, colocando um termo à sua vida, seria uma consequência inevitável da expulsão desse alegado "parasita".

A meu ver, o fulcro da questão reside precisamente na forma como se vê a vida humana que é eliminada pelo aborto. Considerando que esse ser humano inocente é uma entidade distinta da mãe e não é nem um "parasita" nem um invasor, creio não haver alternativa senão a de reconhecer o seu direito à vida e a obrigação de esse direito ser protegido pela ordem jurídica vigente. Se tivermos adicionalmente em conta que o direito à vida de cada ser humano inocente não resulta de uma concessão do Estado nem de quaisquer outros indíviduos (incluindo os pais), é difícil conceber que uma autoridade política legítima se permita ignorá-lo.

No caso do novo referendo sobre o aborto que vai ter lugar em Portugal, o que está em causa é ainda mais grave, pois o Estado propõe-se não só ignorar o direito á vida como contribuir activamente para a sua violação, seja através do Serviço Nacional de Saúde ou da subsidiação com fundos públicos de estabelecimentos privados dedicados à prática do aborto livre.

Pelas razões expostas, considero que o aborto totalmente livre e subsidiado pelo Estado até às 10 semanas é inaceitável. Por isso é importante que - mais uma vez, e apesar da fortíssima influência mediática e institucional dos defensores do aborto livre - o Não saia maioritário no referendo.

Comentários:
"...reconhecer o seu direito à vida e a obrigação de esse direito ser protegido pela ordem jurídica vigente."

Podemos então presumir que a ordem política vigente deve também legislar no sentido de garantir que a mãe "se comporta bem" durante a gravidez? Proibição de fumar, de beber, de comer gorduras durante o período de gestação?

E continuo também sem perceber esta coisa da chamada "vida". Sem qualquer tipo de definição, utilizada fora do contexto para defender crenças individuais que são posteriormente impostas a terceiros.

Dúvida: um óvulo e um espermatozoide a quem "não foi dada" a hipótese de fecundação também são vida?

No the Lancet via blasfémias:

" Direct costs of treating abortion complications burden impoverished health care systems, and indirect costs also drain struggling economies"
 
Muito bom texto André. Contudo, é preciso explicar que Rothbard tem uma definição diferente de "parasita". Não se trata de uma classificação taxonómica (sim, seria absurdo), mas funcional: um organismo alojado no corpo da mãe, contra a sua vontade...
 
Então porque é que V. não defende a revogação da lei actual, que despenaliza abortos realizados até às 24 semanas (6 meses) e abortos realizados a concepções fruto de violação ?
 
Anónimo das 0:47,
Já vi que anda de post em post a ver se nos entala com essa questão. Não tenho dúvidas de que o AAA o esclarecerá de forma cabal quanto a essa sua (insistente) dúvida.
 
De facto, o enunciado por Rothbard é a única defesa consistente da não criminalização do Aborto.

Mas a tentativa da sua refutação não deve passar pela via apontada pelo André.

Se Rothbard achasse que o feto é um "parasita" faria a defesa pela via de Ayn Rand que simplesmente nega o carácter humano do feto.

Por não ser essa via é que o raciocínio recai na acção de expulsão do corpo, não deixando de mencionar a imoralidade do acto e mesmo diria eu, do raciocínio.

A única via para refutar este acto de "expulsão" é conjugar que:

* O acto de expulsão corresponde a morte certa (pode não vir a ser assim, por avanços tecnológicos), algo que não acontecesse com dar apara adoptar (expulsão de um criança do lar)

* O valor da Vida

(necessário ter em conta a posição como a pena de morte e eu diria, talvez tentar ser mais consistente na análise critica dos actos de violência em massa praticados pelo Estado - a guerra)
 
A defesa da criminalização passa assim:

* por evocar a consequência da morte inevitável para o feto pelo acto de expulsão

* por evocar o carácter absoluto da vida

A dificuldade na defesa da criminalização reside na possibilidade de estar a estabelecer direitos positivos, mas como eu faço sempre notar, essa dificuldade parece ser uma pormenor na imensão dos direitos positivos já "assegurados" coercivamente pelo Estado.

Defender o direito positivo a nascer parece ser um pormenor de inconsistência e com facilidade se aceita e tolera como excepção.

Assim, essa "excepção" evocada por Liberais convictos e tendencialmente jus-naturalistas será evocada por quem tem autoridade moral para o defender.

Em conclusão, os Liberais, e na medida que o são consistemente, serão os únicos a ter a capacidade moral de reivindicar a criminalização do aborto como uma excepção de princípio.

Por outro, têm a capacidade óbvia de indicar a imensidão de direitos positivos assegurados pelo Estado supostamente para proteger o mais fraco (ex: regulação do salário minimo).
 
"Anónimo das 0:47,
Já vi que anda de post em post a ver se nos entala com essa questão. Não tenho dúvidas de que o AAA o esclarecerá de forma cabal quanto a essa sua (insistente) dúvida"


A verdade é que ela ainda não foi rspondida por ninguém.
 
AA
Fugiu-lhe a boca para a verdade e nem reparou no que disse: «um organismo alojado no corpo da mãe». «Mãe». Não há mãe sem filho. A mãe não o era antes de engravidar. A mulher faz o filho. O filho faz a mãe. Está a ver o absurdo do que disse?
 
Anónimo das 15:48,
A resposta do AAA, para quem a quiser ler, está no seguinte parágrafo:
"Já quando o que está em causa é o tratamento legal a dar ao aborto livre, não basta demonstrar a imoralidade intrínseca da prática. Não obstante a inequívoca existência de uma profunda interligação entre Moral e Direito, há um grande número de actos imorais que não devem merecer sanção legal. Acresce ainda que pretender atribuir ao Estado a "tutela" moral da sociedade por via legislativa potencia o abuso de poder e coloca em perigo os direitos individuais e a própria ordem social. Numa perspectiva liberal, as condutas moralmente censuráveis só devem ser sancionadas juridicamente quando atentam contra os direitos de terceiros."
Cumprimentos
 
"Numa perspectiva liberal, as condutas moralmente censuráveis só devem ser sancionadas juridicamente quando atentam contra os direitos de terceiros."

Tendo presente a argumentação de Rothbard e que assume à partida a imoralidade do acto, e as dificuldades e portas ao estatismo que se abrem se o Estado fosse mesmo procurar quem pratica o aborto, o adequado seria a sociedade civil a sancionar o acto pela sua própria acção.

O problema é que não só é o Estado o primeiro a impedir que a discriminação e ostracismo possa ocorrer, como vai tornar o aborto num direito a ser exercido com o apoio do Estado.

Entre a criminalização soft e na prática pouco efectiva e a descriminalização com a proibição de discriminação + a subsidiação, é preferível a situação actual.
 
Fugiu-lhe a boca para a verdade e nem reparou no que disse: «um organismo alojado no corpo da mãe». «Mãe». Não há mãe sem filho. A mãe não o era antes de engravidar. A mulher faz o filho. O filho faz a mãe. Está a ver o absurdo do que disse?

Logo, depreendo pela sua lógica, o feto/filho não é um organismo. Belíssima refutação.
 
Bem ando de post em post a ver se vos "entalo", na fina expressão do Rui Castro, com a questão que sempre repito.

O problema é que já ando nisto há bem mais de uma semana (ou não tinham ainda notado?) e ainda não me responderam...

A "resposta" do AAA, que o Rui Castro cita, é magnífica de absurdo, da qual não partilho.

Para ele, é preciso demonstrar a imoralidade da prática do aborto e, além disso, demonstrar a relevância penal, para o Estado, dessa imoralidade. Para ele, o teste da relevância ocorre quando há atentado a direito de terceiro.

Bem, acaso sou só eu que percebo que no aborto por violação ou no por mal formação do feto, ainda que viável, TODOS estes critérios se verificam ? Isto é, que há imoralidade (na opinião dos defensores do NÃO, claro), que há relevância penal (porque se atenta, na opinião dos mesmos defensores, contra o direitro à vida do nascituro) e que há, manifestamente, atentado contra direito de terceiro, ie, o nascituro, que em nada contribuiu para a violação ou paraa sua deficiência (nem por graça se deve dizer isto, mas a frase é inevitável) ?

Rui, responda lá, por si: V. aceita e vive bem com a lei actual ou não ?
 
Caro anónimo,
A lei que temos não será perfeita mas é certamente melhor do que a que aí vem, caso o SIM ganhe.
Ainda assim, para satisfazer a sua curiosidade quanto à minha posição pessoal, aqui vai.
Antes de mais, importa referir que distingo a minha moralidade daquilo que entendo que o Estado deve salvaguardar mediante a tutela penal que concede a determinados bens ou pessoas. Concretamente no aborto: apesar de, pessoalmente (opinião partilhada pela minha mulher), rejeitar o aborto, seja quais forem as circunstâncias do mesmo (com excepção do caso em que possa haver risco de vida para a mãe), a verdade é que entendo que estas minhas convicções não devem ser impostas ao resto da sociedade.
Coisa diferente é considerar que o Estado deve proteger penalmente determinados bens jurídicos, sejam eles pessoas ou coisas, através da consagração de penas e medidas de segurança. Para mim, sendo o feto uma vida humana, a lei terá de a proteger, nomeadamente através da penalização (criminal) de quem atentar contra a mesma. E aqui há tanta moral como no homicídio ou na violação.
Resumindo: muito embora considere que o aborto é algo de errado, entendo que existem determinadas circunstâncias que, em termos jurídicos, poderão levar a que quem aborta não seja punido ou seja punido com pena distinta da de prisão. São eles os casos de violação ou de perigo de vida para a mãe.
Estou à disposição, caro anónimo para qualquer esclarecimento que entenda por necess~´ario
 
Rui Castro

Agradeço a sua resposta.

Explique, se tiver paciência, só mais isto: Porque é que diz que "entendo que estas minhas convicções não devem ser impostas ao resto da sociedade" e defende publicamente o NÃO, que é justamente uma forma de impor ao resto da sociedade as suas convicções sobre o aborto ?

E explique, por favor, o seguinte: Porque é que V., que defende com tanta garra e empenho o NÃO, não pede a revogação da lei actual, com a qual não concorda ?

repare, nem custava muito, bastava escrever isso no blog !

Assim, bem vê, a sua razão moral, em que V. baseia a exposição pública da sua posição de votar NÃO é, no mínimo, questionável.

Eu não quero, nem de longe, que todos sejamos ortodoxos em todos os aspectos da nossa vida e que, em certas circunstãncias, deixemos de actuar com "desleixo moral" ou com cedência a outros valores que, no momento, nos parecem mais importantes.

O que acho profundamente condenável é que V., tendo este esqueleto no seu armário, ande a tentar convencer publicamente os outros a ser como V.. Isso é que não.
 
Caro Anónimo do costume:

Outra vez?
 





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