O ABORTO E AS MULHERES

Nos últimos tempos têm-nos acusado, a mim e a todos que como eu votam não no referendo, de possuir um qualquer instinto persecutório contra as mulheres. Estas, sempre vítimas, nunca autoras, seriam as pobres humilhadas, que nós insistiríamos em tratar como levianas e incautas.
Imbuídos de um espírito de desqualificação da responsabilidade, entendida como uma imposição exterior que oprime, os arautos do sim bradam que as mulheres sabem o que fazem e que, por isso, quando decidem abortar actuam conscientemente.
Entendamo-nos.
Sou mulher. E como mulher, e ainda que arredada de qualquer feminismo ortodoxo, recuso aceitar um epíteto pejorativo que olvide a dignidade de tal estatuto. Recuso, diante da alternativa de Domenach, a servidão e, como tal, opto pela responsabilidade.
A responsabilidade de saber que todas as mulheres são autoras dos seus actos. A responsabilidade de saber que todas as mulheres, exercendo o seu direito à autodeterminação sexual, assumem as consequências inerentes àquele exercício livre. A responsabilidade de aceitar uma gravidez, mesmo que indesejada.
Ser homem (e também mulher) é, já diria o filósofo, ser responsável. É por entender que as mulheres não são um bando de levianas e incautas que não posso aceitar, por referência a elas, uma desconsideração da verdadeira essência do ser livre. Na exacta medida em que só sendo responsáveis agimos livremente.
E, assim sendo, ao direito à vida que o embrião reclama não se opõe o direito à liberdade da mulher. Ao direito à vida do embrião associa-se o direito à liberdade desta. Perante uma gravidez não há direito de escolha, porque a decisão livre foi tomada a montante. Perante uma gravidez há uma mulher, cuja dignidade reconhecemos, e por isso consideramos responsável pelos seus actos, e um embrião, um outro ser humano, uma outra pessoa.
Um ser responsável e um ser desprotegido. Ao Estado compete tutelar, juridicamente, o segundo. E a única via discernível é a criminalização. Sem perseguições ou estigmatizações. Reclamando, apenas, que, se aquele primeiro nível de responsabilidade não for assumido, um segundo patamar se torne actuante. Em nome da tutela do embrião; em nome, ainda e sempre, da dignidade da mulher. Porque pressupomos que ela não é uma leviana e uma incauta. Porque pressupomos que ela sabe o que faz. Porque não a rebaixamos a um estatuto de inimputável.
Aqueles que tanto falam em nome das mulheres, contra o que pretensamente fazem crer, são os mesmos que as tornam objectos. São os mesmos que, a um tempo, em vez de oferecer ajuda, as reduzem ao patamar de incapazes e, em homenagem a tempos idos, as relegam, enquanto tal, ao abandono solitário e triste.

Comentários:
Não podia estar mais de acordo.

JMM
 
"A responsabilidade de aceitar uma gravidez, mesmo que indesejada."

Ou não.É isso a autodeterminação.

Quando se afirma que não há direito á escolha isso implica que não existe autodeterminação da mulheres.
São fêmeas reprodutoras, como os animais.
 
Ser homem (e também mulher) é, já diria o filósofo, ser responsável.

Hegel?
 
Mafalda, 100% de acordo.
MLC
 
não concordo com a "colectivização" do ventre, de quem vai dando graças por a intervenção estatal ainda não determinar quem e quando engravida e
acho contraditório a forçosa inevitabilidade criminal com a não perseguição ou estigmatização. E se a gravidez for resultado, a "montante", de um acto contra a sua vontade? o crime é, por ventura até compreensível?

RS
 
Não o diria melhor.
 
Caro AA,

voltamos a encontrar-nos.

Hegel não é a resposta certa.

Quer continuar a tentar ou prefere que eu lhe responda, para poder ler os seus liberais que, procurando assegurar a realização de interesses individuais através da emergência de direitos de propriedade, não permitem fundar a validade em que se traduz o direito?

Caro RS,

para não me repetir pedia-lhe que lesse o que escrevi sobre os casos, aliás excepcionados na lei, de gravidez fruto de violação.

Prometo voltar ao assunto num post, em breve.

Caro anónimo,

percebeu tudo ao contrário. A escolha existe a montante e passa por decidir ter ou não uma relação sexual, tê-la de forma protegida ou não. O resto já não permite escolha.

Explicar-lhe-ie, em breve, o que é a liberdade e como ela surge indissociável da pessoalidade que sempre implicará o reconhecimento do outro, no caso o embrião, como um ser igual a mim em dignidade.
 
Muito bem!!!
 
Excelente texto.
 
"Hegel não é a resposta certa.

Quer continuar a tentar ou prefere que eu lhe responda, para poder ler os seus liberais que, procurando assegurar a realização de interesses individuais através da emergência de direitos de propriedade, não permitem fundar a validade em que se traduz o direito?"

Se o autor é quem eu penso, Hegel não é a resposta certa mas "filósofo" também só com muito boa vontade pode ser considerado um qualificativo adequado. Mas isso é pouco importante.

Já quanto aos liberais do AA (que se recomendam), certamente não procuram "assegurar a realização de interesses individuais através da emergência de direitos de propriedade", desde logo porque são suficientemente esclarecidos para saber que essa emergência não resulta de um processo dirigido. Quando muito poderão advogar a defesa dos direitos de propriedade legitamente constituídos com o objectivo de proteger os interesses individuais e promover o bem comum. O que é uma coisa bem diferente.

Quanto à fundação da validade em que se traduz o direito, os liberais do AA (como, aliás, os não liberais) dividem-se.
 
Cara Mafalda,

Não sei quem é o pensador que refere. A minha melhor segunda tentativa seria o Cardeal Ratzinger, agora Papa Bento XVI, mas esse não tenho dúvidas que o AAA classificaria, justamente, como filósofo. Prefiro não continuar a tentar. Ou seja, na expressão dos seus outros comentários no AADF, demonstrei que não tenho conhecimentos filosóficos para discutir consigo. Peço-lhe o favor de me elucidar.
 
Caro André,

a minha resposta ao AA só se entendia no seguimento de um acesso debate que com ele mantive.
É que o AA, levando os seus amigos liberais ao extremo, entende que o direito da mulher ao corpo é um direito de propriedade e que, portanto, o embrião deve ser visto como um invasor, a ser expulso.

Com os melhores cumprimentos,

Mafalda
 
Aceso e não acesso. Efeitos da hora.
Mafalda
 
Cara Mafalda:

Os homens já perderam o poder absoluto. Agora só falta as mulheres reclamarem a sua parte. Independentemente da questão do aborto - mas adequadíssima a ela - excelente contribuição. Já faltou mais para homens e mulheres serem iguais.
 
O que deve então o estado fazer quando a mãe claramente sabe que não terá as condições para criar a criança que vai resultar dessa opção livre a montante?

Não será então de incluir na lei uma obrigatoriedade de constituir um lar saudavel uma vez que a opção livre também partiu do lado paterno?

Talvez o estado deva então fornecer esse lar ou expropriar o embrião sempre que julgue que as condições não se reunam? Aí sim protegia-se verdadeiramente o ser desprotegido garantindo o direito à vida.
 
Mafalda,
Texto lapidar. Irrepreensível. Claríssimo. Atrevo-me apenas a sugerir, concomitantemente, uma outra linha de reflexão, a propósito da sua afirmação: " (...) em vez de oferecer ajuda, as reduzem [às mulheres] ao patamar de incapazes e, em homenagem a tempos idos, as relegam, enquanto tal, ao abandono solitário e triste."

É que as "criminosas" (como gostam os nossos adversários repetir impressivamente) não são apenas as mulheres (debilitadas, sem prejuízo de serem responsáveis) mas todas as pessoas que vivem desse negócio e que aceitam, a troco de 30 dinheiros, colocar a vida da própria mulher em perigo, dada a ausência de condições dos já célebres "vãos de escada".
 
Nuno Pombo,

No seu último parágrafo faltou apenas referir os homens (pais das crianças)... Ou esses não são criminosos?

Não se lhes pode imputar qualquer tipo de culpa? São sempre a favor da vida? Nunca podem escolher, participar ou até influenciar a decisão das mulheres?
 
Excelente post.
Finalmente alguém escreve preto no branco "E a única via discernível é a criminalização". Não podia estar mais de acordo. É uma posição clara que contrasta com o politicamente correcto de Freitas do Amaral, Luis Filipe Menezes e outros cuja opinião é mais "nim", isto é, são contra a prática do aborto mas não defendem a penalização.
Força Mafalda.
 





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