A propósito de um SIM

Desta feita do Adolfo Mesquita Nunes. Algumas questões:
"A pergunta que me é colocada é de carácter penal. Deve uma mulher ser penalizada por abortar, de forma livre, num estabelecimento autorizado, até às dez semanas? E a minha resposta a esta pergunta é de que não. Eu não só não quero que ela seja penalizada como, olhando à minha volta, não conheço nenhum caso em que o tenha sido. Esse é o meu sentido de voto."
Caro Adolfo, a pergunta é muito mais do que isso. Por que não dizer Pode uma mulher abortar, de forma livre, num estabelecimento autorizado, até às dez semanas? Tenho para mim que não é exactamente a mesma coisa, muito embora a minha resposta seja diferente da tua na pergunta que colocas ali em cima. Está em causa, efectivamente, uma liberalização total e sem condições do aborto, quando praticado até às 10 semanas.
"O abortamento continuará, para mim, a ser uma questão científica, moral e pessoal. Mas não é sobre isso que eu estou a ser questionado. Eu não me estou a pronunciar sobre se existe vida desde a concepção (penso que sim), sobre se o abortamento é moralmente condenável (penso que em muitos casos, é) ou se pessoalmente optaria por sugerir à mulher grávida de um filho meu que abortasse (penso que não sugeriria)."
O que é isso de científica? Já agora, pessoal porque desqualificas o feto enquanto vida humana, ou porque o entendes como sendo propriedade da mãe?
Como é que podes reduzir esta questão a um problema moral afirmando, por outro lado, que o feto é uma vida humana? Nessa perspectiva não descortino a diferença material que existe entre um aborto e um homicídio, o que tornaria este último, de acordo com o que dizes, numa mera questão moral.
"O abortamento será quase integralmente despenalizado até às 10 semanas, é um facto."
Quase? Por que não dizer totalmente? Haverá algum pudor em assumi-lo? Altera de alguma maneira o teu sentido de voto considerar que estamos perante uma liberalização total ou em face de uma quase total liberalização?
"Significa, apenas, que nenhuma mulher deverá ser presa por tê-lo praticado"
Sabes melhor do que eu que o facto de uma determinada conduta ser qualificada como crime não implica necessariamente que acabe com uma condenação em pena de prisão.

Comentários:
Já te respondi (ou tentei!).
Um abraço,
a.
 
Caro Adolfo,

dois ou três pontos, centrando-me na vertente jurídica do problema:

a) o que nos separa é o entendimento sobre o que é o direito. O Adolfo pretende erigir um sistema jurídico axiologicamente neutro. Eu dir-lhe-ia que isso é uma utopia positivista que, aliás, gerou grandes malefícios.

b) E não diga que é necessário recorrer ao direito natural para fundamentar um sistema de direito com uma intencionalidade material clara. Várias foram as experiências de superação do jusnaturalismo que combateram em simultâneo o positivismo.

c) choca-me, confesso, que ainda hoje se afirme que o direito pode ser mudado a bel-prazer do legislador. Não o pode, de facto. Há leis injustas e contra elas podemos lutar, não só num plano ideal, mas concretamente, denegando, enquanto juristas decidentes (vulgo juízes), a sua aplicação porque contrárias ao princípio normativo do direito enquanto direito. O direito não é uma pura forma ordenadora das condutas sociais. Tem, antes, uma intenção de validade, que se actualiza em cada decidir concreto. É, na célebre expressão, um dever ser que é.

d) Esse dever ser que é assenta numa ideia de dignidade da pessoa humana (aliás, pórtico de entrada da CRP). E é esta que nos permite, a partir do momento em que se recusa a ideia de um sistema fechado, a determinação da relevância jurídica de um problema.

e) São três as notas potenciadoras da emergência do direito (aquelas tais que nos permitem reconhecer um problema como um problema jurídico): a condição antropológica do ser humano, o surgimento de um conflito entre sujeitos e o apelo à ideia de dignidade da pessoa humana.

f) Parece-me, portanto, difícil não enquadrar o problema do aborto entre os problemas jurídicos.

g) Remetê-lo para o plano moral é não reconhecer a nota de alteridade que o integra. Ou seja, é não reconhecer no embrião outro ser, portador de direitos (ou seja, é negar parte da regulamentação civilística que, ainda sem o reconhecimento da personalidade jurídica, confere direitos aos nascituros).

h) Chegados ao ponto em que é inegável que o direito tem uma palavra a dizer no sentido da tutela do embrião, pergunto-lhe: como garantir essa tutela a não ser pelo direito penal? Conhece outro meio? Eu não…

i) Não diga sequer que não acha justo uma mulher ser presa pela prática do aborto. Dizer isso é assumir que o juiz é um mero sujeito passivo, a boca que profere as palavras da lei. Ora, o juiz tem, no julgamento dos casos penalmente relevantes, um importantíssimo papel. Ele vai olhar para o caso e extrair dele todas as circunstâncias decisivas para proferir uma decisão materialmente justa e normativamente adequada.
Não acha diferente uma mulher praticar um aborto em estado de desespero, atenuante da sua culpa, ou praticar vinte abortos porque lhe apetece (e o que não tem faltado são reportagens denotadoras da leviandade que povoa estas mentes)? Eu acho. Tal e qual como é diferente o caso do senhor que furta para alimentar o filho ou furta porque lhe apetece. A pena concretamente determinada será diferente.

j) E quanto a penas… Não tente argumentar falaciosamente. Deve saber perfeitamente por que razão a moldura penal abstractamente prevista para o crime de aborto é diferente da moldura penal abstractamente prevista para o crime de homicídio. É que na definição destas intervêm não apenas considerações respeitantes ao valor dos bens jurídicos protegidos pela disposição penal mas, outrossim, ponderações respeitantes à prevenção geral e especial, actuando a culpa dentro dos limites por estas balizados.
Mafalda
 
"Significa, apenas, que nenhuma mulher deverá ser presa por tê-lo praticado"

Não é bem assim.

Em primeiro lugar, não é perguntado se a mulher deverá ser presa mas sim se deverá ser penalizada. A penalização poderia tomar a forma de serviço comunitário ou multa.
Para muitas pessoas, apresentar a questão de uma ou outra forma pode ser o suficiente para alterar o sentido de voto.

Em segundo lugar, um referendo não é uma mera pergunta para se saber a opinião sobre uma questão muito concreta e limitada.
O resultado de um referendo, se positivo, tem consequências que vão muito além do que é perguntado e que devia ser esclarecido antes do referendo.

Algumas questões sobre essas consequências:
- devido aos prazos, os abortos terão prioridade sobre intervenções cirurgicas marcadas?
- para contagem do prazo, conta a data do aborto ou a data em que o aborto foi marcado?
- se não existirem condições para realizar o aborto na data marcada e o prazo legal fôr ultrapassado, o aborto será cancelado ou a Lei "flexibilizada"?
- os abortos a pedido ("por opção da mulher") terão prioridade sobre os abortos por razões médicas, devido aos prazos mais apertados para os primeiros?
- os abortos serão grátis?
- quantos abortos será aceitável que uma mulher realize até que se questione o "por opção da mulher"?
- se o Estado pagar os abortos realizados em clínicas particulares, quem escolhe a clínica ou determina o preço?
- os médicos estão proíbidos pelo seu Código Deontológico de realizar abortos a pedido portanto, se algum se recusar a realizar um aborto sem razões médicas que o justifiquem (e médicos que fazem campanha pelo "Sim" dizem que se recusarão a realizar abortos sem justificação médica), qual é a resposta do Estado?

Como compreenderão, as respostas a estas questões podem muito bem alterar o sentido de voto. Há até um comentador que escreveu um artigo de opinião para um jornal de grande circulação que afirma que à pergunta do referendo responderia que sim mas que, caso os abortos sejam grátis e/ou tenham precedência sobre cirurgias, votará não.
 





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