Talvez

Em todas as campanhas do aborto, e já vamos na terceira, há sempre momentos em que a intolerância dos exaltados vem ao de cima. Do lado do “sim” no próximo referendo, o texto de Madalena Barbosa “A prisão e o aborto” (Público, 22/11/06) é um desses momentos. Não vou perder muito tempo com os impropérios da autora, “especialista em igualdade de género” (novo título, ao que parece, das feministas radicais de antanho). Lembro apenas a insinuação grotesca de que “os movimentos pró-vida têm boas estratégias, importadas talvez dos Estados Unidos, onde usaram o terrorismo para tentar acabar com os direitos das mulheres” através de “centenas de atentados bombistas e assassinatos”. Seria matéria para os tribunais e não para os jornais. Mas os argumentos em defesa da liberalização do aborto merecem resposta, sobretudo por serem tão repetidos.
---
Comecemos pelo princípio. “O aborto é mau” e quem o faz “renuncia por vezes a uma criança que até desejaria ter, se pudesse”. Mas não pode porque, com filhos, “não arranja emprego, não progride na carreira, vai trabalhar mais por menos remuneração, não tem casas apropriadas, não tem creches, não tem tempo para estudar, não pode fazer os horários extraordinários que agora exigem aos técnicos licenciados”. Sabendo embora que há mais mulheres do que as licenciadas, concordo inteiramente. Vejo tudo isso em minha casa. O que eu não vejo é a mesma energia por parte dos defensores do “sim” para combater os males que tão oportunamente denunciam. Não conheço estudos de “especialistas em igualdade de género” sobre a discriminação das mães no mercado de trabalho. Não recordo nenhuma iniciativa legislativa dos partidos que propõem a liberalização do aborto para diminuir o IVA sobre as fraldas. Não vislumbro a mais leve preocupação do Governo em cobrir o país com uma boa rede de escolas e maternidades. Pelo contrário: só vislumbro a óbvia solicitude em fechá-las, ao mesmo tempo que anuncia ir comparticipar abortos em clínicas privadas. Para estes paladinos dos direitos das mulheres, o aborto é a única solução, o anticonceptivo que nunca falha. Nada mais têm a oferecer-lhes além do “aborto nas primeiras dez semanas, quando a vida humana ainda não o é.”
Compreende-se que quem proclama não haver mais nenhuma solução, mas nada faz para que haja, proclame também que antes das dez semanas não há vida humana. O que há então? Vida piscícola, já que o feto vive dentro de água? E por que súbito milagre, decretado pela Assembleia da República, passa a haver vida humana depois das dez semanas? Estes malabarismos conceptuais mostram bem o que procura o “sim” no referendo: a liberalização do aborto e não a sua despenalização. Leia-se a pergunta que vai a votos. As únicas condições para permitir a prática de aborto até às dez semanas são a “opção da mulher” e a realização da cirurgia “em estabelecimento legalmente autorizado”, público ou particular. O aborto passa a ser totalmente livre e, mais do que isso, um negócio subsidiado pelos nossos impostos.
No intuito de desviar as atenções de coisas tão evidentes, os defensores da liberalização costumam invocar o aborto clandestino, por um lado, e as “marcas psíquicas de uma gravidez forçada”, por outro. Omitem, porém, as marcas - psíquicas e não só - que um aborto, clandestino ou legal, deixa sempre nas mulheres. E omitem que em todos os países que abriram as portas à liberalização o número total de abortos aumentou exponencialmente. Há hoje uma alarmante quantidade de dados empíricos que provam isso.
E isso é o que devemos discutir, não os “talvezes” delirantes de uma “especialista em igualdade de género”. Quando o nível desce da inverdade dos factos à calúnia das pessoas, já não é o aborto, ou a vida, ou os direitos das mulheres que estão em causa, mas a mera possibilidade de convivência democrática. Talvez Madalena Barbosa não queira esse debate. Talvez não queira a liberalização do aborto, mas a do insulto. Talvez queira apenas eliminar a diferença – primeiro a de género, depois a de opinião.Talvez.

(Artigo publicado ontem no Público, com algumas gralhas que aqui corrigi.)

Comentários:
o sr. picoito rebate um momento de intolerância de um exaltado, com um momento de intolerância refletido e pessoalmente insultuoso.
o texto é pobrezito...
 
Não é só pobrezito: é tolo.
 
...pobrezito e quase risível.

Se conseguirem carregar aí onde diz “mais” vão reparar no seguinte:

O Sr. Picoitol está a contra-argumentar outro texto sem apresentar argumentos. A única coisa parecida, e só parecida, com um argumento é o seguinte:

"Compreende-se que quem proclama não haver mais nenhuma solução, mas nada faz para que haja, proclame também que antes das dez semanas não há vida humana. O que há então? Vida piscícola, já que o feto vive dentro de água? E por que súbito milagre, decretado pela Assembleia da República, passa a haver vida humana depois das dez semanas? Estes malabarismos conceptuais mostram bem o que procura o “sim” no referendo: a liberalização do aborto e não a sua despenalização."

O próprio texto descreve o seu absurdo, afinal onde estão os “malabarismo conceptuais”? Estarão no pseudo-argumento da "vida piscícola"? O senhor está a brincar com coisas sérias…

Se for capaz, Sr. Picoito, exponha um argumento construtivo e não uma série de invectivas sem sentido, como essa de quem defende a despenalização devia baixar o IVA às fraldas... Isto devia era estar no blog do Gato fedorento, aí sempre se entendia o seu propósito…

E já agora, porquê tanta preocupação com os EUA, deve-lhes algum favor ou pensa que há por lá alguém preocupado com esta questão?

Cumps.
 
Do outro lado há uma insinuação de cumplicidade com atentados bombistas mas o meu texto é que é pessoalmente insultuoso? Francamente...
 
rcl, importa-se de dizer porquê ou em quê é o texto tolo? Ou eu? Podia ser um início de conversa.
Muitagradecido
 
Manuel, não é fácil argumentar contra o insulto puro e simples. deveria ler o o outro texto primeiro. O exemplo IVA sobre as fraldas serve para mostrar que os defensores do sim não estão realmente interessados em resolver pequenos problemas concretos de quem tem filhos, mas em resolver com uma grande receita, de maneira tipicamente ideológica, questões complexas como o aborto clandestino ou os direitos das mulheres. Queiram resolver primeiro os pequenos problemas e acreditarei que querem resolver os grandes.
 
Ah, e malabarismo conceptual é dizer, como faz Madalena Barbosa (a sério que vale a pena lê-la), que não quer a liberalização do aborto mas uma "despenalização em condições especiais"... Quem é que está a brincar com coisas sérias?
 
Não seja tonto, homem.
Só defende liberalização quem defende que não seja aplicda qualquer pena a quem pratica o aborto até aos 9 meses. Todos os outros, defendem a tal "despenalização em condições especiais". Isto só é malabarismo conceptual na cabeça de quem não sabe nada de leis.
 
Lololinhazinha: "despenalização em condições especiais???11" É óbvio que o que está em causa é a liberalização do aborto até às 10 semanas, que passa a não estar dependente da verificação de qualquer condição mas tão somente da vontade da mulher. Não há que verificar se ocorrem quaisquer "condições especiais".
Malabarismo conceptual é chamar-lhe despenalização, para dar um ar de moderado ("niguém é a favor do aborto"), e depois usar os nossos hospitais e os nossos dinheiros para acabar com vidas.
 
É uma liberalização até às dez semanas, mas havemos de ir cada vez mais longe se o sim ganhar agora. Não dou dez anos para voltarmos a fazer um referendo para alargar ainda mais o prazo do aborto a pedido (até às 16 semanas?).
Para si, lolinhazinha, até é bom porque nessa altura poderá finalmente votar.
 
Caro Pedro,

não acho que daqui a dez anos haja um novo referendo para alargar mais o prazo a pedido.
Se o sim ganhar desta vez, deixa de estar politicamente refém da consulta popular. Ou seja, não lhe dou muito tempo para, na AR, e sem referendo prévio, se alargar o referido prazo.

De resto, excelente texto. Muitos parabéns.
 
Eu diria que, se o sim ganhar, no mínimo vai acontecer o que ocorre em Espanha: as ricas clínicas de aborto vão-se borrifar para o prazo (custa-me escrever isto) das 10 semanas. Isto é de facto inqualificável!
 
Para alargar até às 10 semanas já não vão fazer referendo, sequer. Vai passar na AR, pela calada.
 





blogue do não