CRIME E CASTIGO

Só agora li o artigo de Helena Matos sobre o aborto. Como sempre, está bem escrito e melhor pensado. Qual é o "ponto"? Muito simples. Helena supõe - é um direito dela - que a verdadeira questão em torno deste assunto é a expressão "a pedido da mulher". É isso que alegadamente "irrita" quem defende um "não" à insensata pergunta de Fevereiro, diz a Matos. Também diz - e isto já é mais grave - que o referendo de 1998 produziu um "não-resultado" e que chegámos até aqui por causa da dupla Marcelo-Guterres. Está enganada, Helena. Duplamente. Desde logo, o referendo de 1998 teve um resultado. Não o esperado, mas o que realmente aconteceu. É a vida, é a democracia. Depois, e bem, o PS entendeu que só pela mesma forma - o referendo - se decidiria o que havia a decidir, sem que a referida dupla tivesse algo a ver com isso. Nada, pois, de ir preparando o terreno para, em caso de um novo "não-resultado", seja para um lado, seja para o outro, resolver o assunto pela matemática parlamentar de circunstância. O assunto é demasiado sério para ficar por aí. É para isso que servem os referendos nem que votem apenas duas pessoas. Se outros não votarem, o problema é deles e do seu conceito de cidadania responsável. Para evitar isso é que haverá uma campanha, para que depois ninguém se queixe ou desculpe. Quanto ao argumentário de fundo, a Helena Matos tem razão quando escreve estar farta da exibição de fotos de fetos. Eu também estou. Mas não pelas mesmas razões da Helena que fala em "milhões de portuguesas" como se o tema fosse uma griffe exclusivamente feminina. A Helena sabe tão bem quanto eu que as mulheres que foram a tribunal por terem interrompido a gravidez não estavam propriamente no princípio da gestação, nem estavam abrangidas por causas exculpativas. Da mesma forma que não me agrada a exibição de fetos por tudo e por nada, também não me agrada que o aborto passe de excepção a regra a mero "pedido da mulher". Digo e repito que o "paradigma" feminino - ou feminista, como se preferir - não sobreleva outro que defenda o "direito à vida". Apesar da eloquência ser outra, a Helena não consegue escapar ao estereótipo que critica, o do "sou dona do meu corpo e posso recorrer ao aborto como puro método anti-conceptivo". Na realidade, não só já não somos "um povo vestido de escuro", como temos todos a estrita obrigação de saber o que é que estamos a fazer, quando e como o fazemos. Para o resto, está aí a lei para proteger o que deve ser acautelado e despenalizado. Não é por causa da lei não ser aplicada ou o ser deficientemente que o "a pedido da mulher" deve vencer, ou seja, consagrar a despenalização total do aborto desde que realizado até às 10 semanas. E não, não está em causa a 11 de Fevereiro "o poder das mulheres". Não acredito que a Helena, uma liberal convicta, ache que as mulheres, todas as mulheres que vão votar "não", sejam ainda "vítimas" de uma qualquer supremacia machona ou umas pobres de espírito que não enxergam nada. O argumento sexista é muito mau, como já o foi na história da "paridade" que a Helena, julgo, tão bem criticou. Finalmente, ainda temos outra concordância. O "tema" não acabará, de facto, a 11 de Fevereiro, seja "sim" ou "não" a decisão. Os abortos clandestinos continuarão, o SNS estará sempre a milhas da actual lei ou de uma outra qualquer mais permissiva e o aborto, por uma questão puramente civilizacional, deverá continuar a ser um crime, relevado apenas nos termos legais presentemente em vigor: quem o cometer ou participar no seu cometimento deve ser punido, razão pela qual também não acompanho, por hipócrita, discriminadora e de "boa consciência", a tese "aborto é crime mas mulheres condenadas e presas é que não". Não há nenhum "poder das mulheres" ou "pedido da mulher" que a salve se tiver que ser penalizada, seja pela sua consciência, seja por injunção legal. No mundo em que vivemos, naquele em que eu vivo, existe crime e castigo. É bom que não nos relaxemos ainda mais.

Comentários:
Excelente João. Não o diria melhor.
 
"Algum dia quer um quer outro terão de ser confrontados com isto."
Últimas palavras do artigo de Helena Matos, que com muito mais razão lhe devem ser dirigidas:
«Algum dia ela terá de ser confrontada com o sim que vota.»

Poderá demorar, mas não seria a primeira a sentir-se arrependida de ter feito algo que já não tem remédio.
Veja-se o caso de Norma McCorvey.

Está cansada dos videos e das fotografias!
Compreendo perfeitamente.
Há certos actos que se apoiam, dos quais é bem melhor não ver o resultado.
 
Amigos
o blog O Império associa-se à vossa/nossa luta pelo NÃO no próximo referendo. Neste âmbito ponham e disponham sempre que for necessário. Vamos, todos juntos, lutar pela VIDA!
 
life just good
 
Excelente João, com a sua actual propensão vaticana aposta no longo curso, porque o que está a dar já deu. Onde está o nosso joão-jenê do impropério grandioso?
 
Não ocorre ao tão inteligente João que as pessoas possam não ter votado no anterior referendo com o intuito cidadão e responsável de afirmar a sua discordância com o próprio referendo? Havia uma lei aprovada no Parlamento que, de facto, por acordo entre António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa foi prestamente substituída pelo referendo. Muitos portugueses defensores do sim, como eu, tiveram a inocência de pensar que boicotar o referendo serviria para fazer respeitar as decisões parlamentares. Mas não se preocupe, caro João, não repetiremos semelhante inocência...
 
O Fernando Branco pode estar descansado porque o reino dos céus é dos inocentes...
 





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