RAZÕES E CORAÇÕES
Como se diz no calão liceal, a Fernanda Câncio "esticou-se". Diria, aliás, que de tão progressista e "progressiva" que quer parecer, está cada vez mais reaccionária. Nesta nervoseira, como é que consegue chegar a Fevereiro bempostinha? O seu artigo no Diário de Notícias constitui um magnífico passo em frente para enterrar o melhor argumentário do lado do "sim" na lama. Mais valia ter estado quietinha com o computador. Eu, que a considero corajosa, altiva e, imagine, consequente na sua inconsequência, fiquei siderado com esta sua miserável prosa. Vamos por partes, embora me apeteça parar já nesta: "grande parte dos animais vivos tem um coração que bate - o que não faz ninguém reconhecê-los como pessoas". Escrever isto a propósito de um embrião vivo, comparando o incomparável - apesar de existirem animais que são bem mais "pessoas" do que muitas pessoas que eu conheço -, para além de demagógico, é intelectualmente desonesto e absolutamente fascisto-feminista, ou seja, obsoleto. Se, como diz a autora, os do "não" "apostam na ignorância", em que é que ela aposta com este disparate? Eu, que defendo a lei actual, não me recuso a falar nos "casos excepcionais" porque eles são de uma clareza cristalina na letra da lei. A mera exclusão da ilicitude não obriga ninguém a interromper a gravidez se algum dos "casos" se verificar. É uma faculdade, não é um direito. Pelo contrário, é um direito aquele que se pretende ver consagrado através da liberalização total do aborto desde que realizado até às dez semanas de gestação, por exclusiva vontade da mulher. Ora, na civilização em que eu vivo e pretendo continuar a viver, nenhum crime passa a direito par delicatesse ou para "justificar" filosoficamente qualquer arquétipo. Jean Genet, nos seus "romances", ergue constantemente o homicida à categoria de herói - e sensual ainda por cima. Todavia, é literatura apenas e em qualquer parte do mundo civilizado um homicida é mesmo um homicida, e não um herói ou uma "vítima". A constante apresentação da mulher como "vítima" - "a rejeição das mulheres" - para justificar o recurso ao aborto como um "direito" praticamente inalienável, em pleno século XXI, é pura demagogia sexista e pura má-fé. Acha a Fernanda que os milhares de mulheres que votam "não" desejam a sua própria "rejeição"? Ou que qualquer eleitor que o faça está pensar em apoucar alguém ou em diminui-lo enquanto cidadão e ser humano? Por amor de Deus. Finalmente, um coração é um coração desde que bata, fora ou dentro de outro corpo. Eu tenho um, a Fernanda tem outro. Não reconheço nenhum tipo de autoridade moral à Fernanda Câncio para determinar que tem "mais coração" do que eu. Ninguém tem o monopólio do coração. Experimente funcionar mais com a razão e menos com a emoção e vai ver que se dá melhor com a vida.