Retribuindo preocupações

A Srª Drª Fernanda Câncio, detentora de um espírito caritativo inolvidável, revela, pela segunda vez, a sua preocupação em relação aos outdoors da campanha do Não.

Ora, como a última coisa que queremos é inquietá-la, e não obstante não sermos os responsáveis por tais cartazes, julgamos que se impõem uns tranquilizantes. Que funcionem como uma espécie de analgésico e lhe demonstrem que não há qualquer desnível cognitivo entre os dois lados. Ou que, se o houver, não é a nós que desfavorece.

Começou por se inquietar com a pontuação e, curiosamente, transmitiu a sua angústia num pequeno parágrafo no Glória Fácil onde, a despeito do rigor reivindicado, separava, com a desditosa virgulazinha, um sujeito de um predicado.

Seguidamente, anima-se com a materialidade da coisa. E passa a usar argumentos dignos de um ser dotado de coração mas pouca razão. Ou talvez não e queira apenas fazer da falácia palavra de ordem, apostando na ignorância, na desinformação, no engodo.
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Pois não é que a Sr.ª Dr.ª Fernanda Câncio afirma que “grande parte dos animais vivos tem um coração que bate” e ainda assim ninguém os reconhece como pessoas. Não sei se com esta asserção a Sr.ª Dr.ª Fernanda Câncio pretende argumentar que o embrião é um periquito, uma formiga ou quem sabe um verme. A verdade é que, se já conseguiu ultrapassar a parte em que o seu pensamento nos poderia levar à qualificação do embrião como alface, couve ou brócolos (Parabéns pela evolução, Sr.ª Dr.ª Fernanda Câncio!), não consigo dilucidar a plausibilidade do que ali é dito. Vejamos. Todos os animais têm um coração e não são pessoas. Certíssimo (está quase aprovada num exame de biologia e pode, sem grande esforço, compreender algumas das categorias enunciativas das TLEBS). Acontece que, para grande irritação da própria, no caso do embrião, sendo vida, esta só pode ser concebida como vida humana. E é aqui que reside o cerne da questão. Não é o qualificativo vida que nos aflige, mas o qualificativo vida humana. Porque, ao admitir que algumas vidas humanas são pessoas e outras o não são, estamos a abrir a porta ao arbítrio e a resvalar num tipo de pensamento que foi avocado por outros num certo país europeu, no século passado.

E parece ser inegável que, até para a Sr.ª Dr.ª Fernanda Câncio, o embrião é uma vida e vida humana. É a própria que o admite, ao dizer que “Depois porque se o embrião não estivesse vivo não se poderia falar em interrupção voluntária da gravidez, por uma simples razão: ela teria sido interrompida involuntariamente, como de resto sucede em 30% dos casos”. Confesso que gostei particularmente do dado estatístico. Embora ele me concite uma pequena dúvida: a alusão aos 30% de casos em que ocorre um aborto espontâneo deve funcionar como um argumento para o lado do sim? Será? Se tiver essa intenção, ainda que sub-reptícia, devemos lembrar a nossa jornalista de causas que, tratando-se de pessoas já nascidas, todas elas acabam por morrer naturalmente e que não me parece ser esse um argumento sério para defender a liberalização do homicídio. Mas, enfim…

Depois, a Sr.ª Dr.ª Fernanda Câncio mostra-se novamente e dramaticamente inquieta com os casos de não punibilidade previstos na legislação actualmente. Sobre eles afirma que “é impossível explicar por que motivo elogiam a lei actual, que permite interrupções de gravidez às 24 semanas de fetos com trissomia, hemofilia, ausência de membros ou de olhos ou anões - fetos que não só têm um coração como apresentam cérebro e estão no limite da viabilidade - e falam de terminar uma gravidez de dez semanas como algo de muito pior.”
Cara Sr.ª Dr.ª Fernanda Câncio, impossível impossível não é. Tanto não é que eu já lhe expliquei há uns tempos atrás. Tanto não é que, depois disso, alguns dos Conselheiros do Tribunal Constitucional proclamaram essa mesma doutrina no seu voto de vencido.
O que me parece mesmo impossível é algum dia a Sr.ª Dr.ª Fernanda Câncio vir a perceber. Mas isso não é problema de quem tenta explicar. É mesmo problema de quem não quer ou não pode perceber.

Dificilmente podia ser tudo mais claro no que diz respeito à falta de razões e de razão do Sim.

Comentários:
Apesar de achar que a recomendação vai cair em saco roto, cá vai (pode ser que a siga e aprenda a olhar para mais do que o seu umbigo). A propósito de vida, aconselho-lhe o post de MVA aqui: http://valedealmeida.blogspot.com/2006/12/sim-ou-assim-assim-bvio-que-um-feto-e.html

de que retiro as seguintes frases:

"É óbvio que um feto e mesmo um embrião são "vida". É óbvio inclusive que são vida da espécie humana. É por isto ser tão óbvio que tanto os apoiantes do "sim" como os apoiantes do "não" concordam que a decisão quanto a abortar é um problema moral e ético que se coloca a quem tem que decidir.(...)O que isto significa é que a questão se põe noutro plano. E esse plano é o da comparação entre a vida humana duma Pessoa individual e social, feita e com biografia e projectos - a mulher que engravida - e a vida no sentido lato que o embrião é."
 
Caro anónimo,

quando haja um conflito entre a vida de uma pessoal social (como se existisse uma pessoa não social... aliás, se reparar bem o problema do aborto só o é porque o embrião existe na interacção social com a sua mãe) e a vida de um embrião, a lei existente resolve o problema e exclui a ilicitude do acto abortivo.
O problema é que, nos casos submetidos a referendo, não há qualquer conflito. Lamento que não perceba.
Se calhar, se deixar de olhar para o seu umbigo ou para a sua barriga (ou, no caso de ser homem, para a da mulher) unicamente, pode ser que comece a perceber...
Cumprimentos
 
Isto da socialite desemboca em tonterias:

"o embrião existe na interacção social com a sua mãe"

Não sei se tá a ver...
 
Caro anónimo:
Concordo plenamente com tudo o que disse no 2º parágrafo excepto nas conclusões que tira: o embrião é "vida no sentido lato" porque ainda não teve o direito de se manifestar como ser humano (de resto, como um feto com mais de 10 semanas ou um recém-nascido), pelo que acho que tem direito a desenvolver o seu potencial e a ser protegido enquanto não tem condiuções para tal. A mulher é de facto "vida de uma Pessoa individual e social" e, com isso, advém também a cidadania e a consciência... deveria ser a mulher (e a sociedade no seu conjunto ajudando-a nesse processo) a evitar as situações que conduzem ao aborto ou então a aceitar as consequências dos seus actos.
Nós consideramos que nos devemos colocar do lado de quem está completamnete indefeso e não tem qualquer culpa ou imputabilidade no processo.
Cumprimentos
 
anonymous,

Incluindo as mulheres que, ganhando o sim, nunca serão obrigadas a interromper a gravidez (mas é mesmo preciso explicar isto?) se forem radicalmente contra o aborto.
E quantas vezes é necessário explicar que nenhuma mulher é obrigada a engravidar?

o que me faz impressão é a facilidade com que toda a gente, de um lado e outro, parece abandonar o discurso sobre o corpo feminino e a soberania de cada mulher sobre ele.
Bem, pelo menos do lado do "sim", são poucos os que abandonam o discurso sobre o corpo feminino e a soberania de cada mulher sobre ele. E são muitos os que, também do lado do "sim", nem chegam a considerar o discurso da vida humana em formação que poderá ser abortada só por a mulher optar por o fazer e apenas porque sim.

a ICAR, por exemplo, promove um concurso de arte infantil sobre a vida intra-uterina denominado "A minha primeira morada". Reparem bem: morada. A metáfora imobiliária é claríssima: o útero não é da mulher, o útero é do inquilino (o feto) e/ou do propietário - o estado, a Igreja, a sociedade.
Se a casa onde vivo fôr arrendada, emprestada ou dos meus pais, não tenho morada? Interessante. E eu que, durante anos, dei como minha morada a morada da casa dos meus pais.
 
JAL:

Parece que não percebeu - nenhuma mulher é uma uma morada, é uma casa, uma coisa, um bem imóvel, um objecto, ou um aquário ( como também já li).
Um mulher não pode ser "arrendada" ou emprestada nem pode ser propriedade de ninguém.
O facto de ter um útero não a reduz á sua condição uterina de incubadora e de parideira
É isso que você não con.segue discernir. Que fazer?
 
Creio que foi a bluesmile que não percebeu.

Morada não é necessariamente o mesmo que moradia. No caso concreto, é óbvio que o termo foi utilizado pelo ICAR no sentido de local onde se mora/vive, não no sentido de casa ou moradia, e que o MVA adulterou deliberadamente o sentido do termo para escrever algo completamente falho de sentido.

Não admira que a bluesmile defenda esse artigo do MVA. Afinal, foi a bluesmile que escreveu "O facto de ter um útero não a reduz á sua condição uterina de incubadora e de parideira".
 
Cara bluesmile:
A mulher não é um bem, nem uma parideira, nem propriedade de ninguém... estamos de acordo.
Porém, o embrião que está no seu ventre também não é propriedade dela! Não é um orgão dela, pois o seu código genético é distinto e é o mesmo do filho que ela terá (ou tem) se não o abortar... ou seja, aquele embrião é a mesma entidade biológica que a criança que nascerá. O embrião está dependente do corpo da mulher? Certo! Mas isso significa que você tambêm considera que um cuidador de um idoso acamado possa dispôr da vida dele, independemente da idade do geronte?
Como mulher, farta de ver o seu corpo como um objecto, parecer-me-ia apropriado que não quisesse ver outro ser humano como objecto... mas já diz o povo "Não peças a quem pediu..."
Isto é tanto mais importante, quanto o embrião não teve culpa de ser gerado... o acto que levou a isso foi uma escolha racional e consciente da mulher (E do homem, saliento)! Isso dá-lhe alguma responsabilidade neste campo! Não é ético descartar-se assim deste inocente!
É isso que você não consegue discernir. Que fazer?
Cumprimentos
 
Errata:
onde se lê "idade do geronte" deveria ler-se "vontade do geronte"
Cumprimentos
 





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