Uma cultura de responsabilidade

1. Entre o “não” e o “sim” há um mundo imenso de motivos, de inclinações, de razões para votar num ou noutro sentido. Às experiências pessoais juntam-se outras tantas dos outros. De uns que conhecemos, de outros que nem suspeitamos quem são. Esses casos concretos levam-nos tantas vezes a repensar e a sopesar o problema, porventura a hesitar nas escolhas.
O mundo está longe do ideal e do perfeito. Sobre isso ninguém tem dúvidas. Mas são estas perguntas, como a do referendo, que interpelam o mais profundo de nós próprios e obrigam a colocar a inevitável questão sobre que mundo queremos.

2. Quando ouvimos os partidários do “sim”, percebemos que, excluídas porventura algumas posições mais extremadas do tipo “na minha barriga mando eu”, todos, votantes do “sim” e do “não”, desejamos um mundo em que não seja necessário recorrer ao aborto. O “sim”, aliás, tem insistido bastante nessa tecla.
Sempre existiu o aborto, seguramente que sempre existirá. A principal diferença parece residir, portanto, na maneira como se olha uma realidade aparentemente inevitável e nos meios que se consideram mais eficazes para alcançar a finalidade de eliminar ou reduzir drasticamente o aborto. O “não” e o “sim” dividem-se, pois, quanto à maneira como a sociedade deve tratar essa realidade.
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Para o “não”, o centro do problema está no respeito incondicional da dignidade da vida humana: da vida do embrião, que tem o direito ao desenvolvimento e à vida, e da vida da mulher, que tem o direito exigir do Estado e da sociedade condições para poder verdadeiramente optar pela vida, pois não há escolha livre quando não há alternativa. O “não” não quer mulheres na prisão, mas entende que para a defesa da vida humana é essencial a valoração penal e que o direito tem as válvulas de segurança necessárias para evitar condenações injustas.
Para o “sim”, é evidente que o sistema falhou, há uma lei penal que pouco é aplicada (e quanto o é resulta numa humilhação das mulheres), o aborto clandestino é uma realidade apenas escondida de quem não quer ver, que se traduz numa imensa desigualdade social, remetendo as mulheres mais desfavorecidas para soluções gravemente atentatórias da sua saúde. Para o “sim”, o aborto é sinal de progresso, de modernidade, de oportunidade (tardia) de apanhar a carruagem dos países mais avançados. Votar “sim” é proteger as mulheres, sobretudo as mais carenciadas, promovendo a igualdade social. Votar “não” será não querer ver a realidade, recusar o progresso, desrespeitar as mulheres.

3. Há dezenas de razões para votar “não”. Quase todas são válidas. De todas essas razões saliento uma: o respeito pelo princípio da responsabilidade enquanto estruturante de uma sociedade verdadeiramente livre.
Neste momento, a maneira mais fácil de o Estado se desresponsabilizar do problema do aborto é liberalizá-lo (chamem-lhe regular e não liberalizar, mas na verdade, uma actuação que era contrária ao direito passará a ser conforme a ele e sempre estou para perceber se alguém vai mandar para a cadeira uma mulher que, por razões diversas, opte por fazer um aborto na clandestinidade…).
É mais prático e mais barato dar condições, leia-se, pagar, para as mulheres abortarem do que dar uma verdadeira opção de vida a essas mulheres. Dar uma verdadeira opção de vida implica educar e auxiliar quando é preciso. O “sim” desresponsabiliza ainda mais um Estado que pouco tem feito. Mas não só o Estado é desresponsabilizado, a própria sociedade civil, que tem tantas ou mais responsabilidades (é ela que tem rosto, diariamente, junto das mulheres que estão numa situação dramática) também no “sim” encontra algum alívio para uma certa má consciência colectiva. Já não será preciso fingir que não se vê: o incidente, o percalço, é rapidamente erradicado de uma sociedade pouco solidária. O Estado não promove a solidariedade e a sociedade, já de si tendencialmente egoísta e “umbiguista”, está comodamente legitimada na sua frieza e distanciamento. Nesta matéria, como aliás em tantas outras, o Estado e a sociedade civil preferem “lavar as mãos”.
O “não” assenta numa ideia de responsabilidade. A todos os níveis. Não desiste de considerar a tutela penal como o meio adequado para proteger a vida humana (compreende-se mal um sistema em que o furto, a burla ou a condução sob o efeito de álcool sejam crime e um atentado directo à vida humana o não seja) e por isso pressiona o Estado a não desistir de promover o respeito por essa vida humana. A tutela penal traduz um sistema de valores, que deve ter coerência, sob pena de se tornar irracional e incompreensível. O “não” acredita que é possível ao Estado – e à sociedade civil – fazer melhor. É possível informar melhor, educar melhor, ajudar mais. Por isso o não responsabiliza também a sociedade civil, para quem conviver com uma tutela penal deve ser um ensejo para uma desacomodação e um estímulo para um apoio solidário (o que bem se viu em Portugal de 1998 para cá com a multiplicação de instituições de ajuda à maternidade). Mas individualmente também é preciso dizer inequivocamente que todos temos de ser responsáveis pelos nossos actos, desde que praticados livre e esclarecidamente. Por isso a maior preocupação deve estar na prevenção de gravidezes indesejadas. É crucial educar as pessoas para serem responsáveis a todos os níveis da sua vida e não passar um atestado de menoridade no que toca à vida sexual de cada um. Dar liberdade implica dar responsabilidade. Se me perguntarem se quero ver aplicada uma pena (não necessariamente de prisão), eu diria que, em casos limite, como é o do aborto praticado sistematicamente como meio de contracepção, por alguém perfeitamente informada e esclarecida, sim, acho que deve ser aplicada uma sanção penal.

4. O homem vive de ideais, a sociedade vive de ideias, mal dele quando deixar de viver procurando concretizar esse ideal. Significará que o homem desistiu de ver mais longe e sucumbiu às dificuldades. Acredito que um dia, quando gerações futuras olharem para trás vão compreender com facilidade que a liberalização do aborto, onde ocorreu, foi, historicamente, um desvio no percurso civilizacional da luta pela promoção da dignidade do homem. Acredito que Portugal está a tempo de tirar vantagem de discutir este problema, outra vez, trinta anos depois de outros países e por isso aprender a ver mais à frente. Liberalizar o aborto até às 9, 10, 11 ou 16 semanas é assumir, colectivamente, uma desresponsabilização por um problema que tem outras vias de resolução. Vias menos fáceis, mais morosas, mas solidamente assentes na convicção de que é possível fazer melhor e na certeza de que o mundo tem muitos tons de cinzento, que o direito deve compreender, sem no entanto perder a sua valoração essencial.

Comentários:
Assunção,

Não posso estar mais de acordo.

É verdade que à sociedade civil cabe assumir um papel fundamental nesta cultura de vida por que lutamos - e as associações criadas em 1998 e o trabalho que desde então têm desenvolvido, aí está para dar conteúdo a esse desígnio. No entanto - no que poderá ser pouco moderno, pouco liberal, estatizante mesmo - aponto o meu dedo ao Estado. É a ele que cabe, de uma vez por todas, criar condições de escolha livre. Como dizes, e escrevo só para sublinhar, "a mulher tem o direito de exigir do Estado e da sociedade condições para poder verdadeiramente optar pela vida, pois não há escolha livre quando não há alternativa." Falas em sociedade também - cá temos estado! Mas um Estado que está disposto a pagar "a solução final" deveria antes estar disposto a pagar "a solução da liberdade"

JMM
 
Felicito-a pelo o seu comentário. A questão para mim é exactamente essa. como já aqui disse algumas vezes, ninguém coerente se manifesta a favor do aborto. Enquanto defensora do "sim", não me manifesto de certo. O Estado deve investir, antes de mais, numa forte campanha preventiva, de planeamento familiar e educação sexual, todas as pessoas devem saber quais as escolhas, qual o caminho a tomar para evitar gravidezes indesejáveis. No entanto, e dado que muitas mulheres recorrem ao mesmo; que nem sempre os métodos contraceptivos se apresentam eficazes; que nem sempre se reunem as variáveis que, eu considero, essenciais para sustentar uma crianças e, permitir que esta se desenvolva "normalmente, defendo que deve existir a possibilidade do recurso a uma IVG, e de condições humanas para quem a ela recorra. Deve haver direito à opção, quando todas as possibilidades e "soluções" já estão esgotadas. Despenalizar o aborto, não significa que todas as mulheres poderão "descansar as suas alminhas", que pratiquem sexo com fartura sem protecção e sem problemas de engravidar; que recorram ao aborto porque lhes "apetece", ou porque é o mais fácil; Não; é sempre a decisão pior e a mais difícil ( como é para mim difícil, se um dia tiver que pôr um dos meus pais num Lar de Idosos, por falta de tempo...porque tenho de trabalhar para alimentar a minha família. Terei eu alguma solução para o evitar?... se não ganho rios de dinheiro e, quase nem tempo tenho para a minha família?); que esqueçam o embrião ou a "vida" que germina no seu ventre; mas sim se lembrem que infelizmente não têm condições psíquicas, económicas, emocionais, para trazer esta criança ao mundo e para lhe garantir um futuro estável; ou porque estão sozinhas no mundo e na vida; ou porque foram abusadas/violadas por alguém, às vezes por pessoas da própria família; ou porque roubam para comer; ou porque se prostituem para sobreviver; ou porque não desenvolvem vontade de ser mãe; ou porque não querem ser abandonadas pelos companheiros ( conheço casos de mulheres ameaçadas de serem largadas pelos maridos/namorados se se decidirem a ter uma criança); ou porque a vida é miserável, pobre, desgraçada, " uma puta triste" e uma criança, quer nos faça impressão ou não, representa um problema - mais uma boca para alimentar; ou porque têm 16 anos e não, não querem deixar a Escola - crianças não podem ter crianças; entre tantos outros argumentos que considero legítimos e válidos; Estas mulheres não são seres "burros", "malditos", impiedosos, bruxas más do Oeste; muitas delas possuem uma vida madrasta, vivem lado a lado com a dor. umas poderão ser mais esclarecidas que outras, umas menos influenciáveis que outras, mas todas elas são seres humanos, com um percurso de vida construído. Para estas mulheres deve existir o direito por optar... deve existir a despenalização. Para outras... que recorram por futilidade ao mesmo, como poder ir para as "férias da neve"(que não representam de todo a maioria) - foi algo fortemente debatido neste blog - ganhar o Não ou o Sim será exactamente igual, porque elas continuarão a serem os mesmos "monstros" de sempre.

R.
 
Obrigada pelo seu comentário. Na verdade, há uma grande partilha de objectivos e de valores na maioria das pessoas que defende o sim ou o não. Concordo com a necessidade de ajudar e de proteger as mulheres, bem sei, como diz, que a vida é "madrasta" para muitas e muitas. Mas não consigo concordar que o aborto deva entrar no contexto dessa ajuda, como instrumento de igualdade social. Defendo que antes de uma gravidez tudo deve ser feito para a evitar. Depois, tudo deve ser feito para a apoiar ainda que esse apoio resulte, no limite, em encaminhar a criança para a adopção.
 
Cara R.
Já que todos os argumentos que considerem o embrião me parecem fúteis para contra-argumentar (uma vez que não partilhamos a mesma posição nesse assunto) irei focar-me na mulher. Nem sequer irei confrontar o que diz sobre as mulheres (a sua perspectiva peca por demasiado optimismo tal como a minha, se calhar peca por demasiado pessimismo, mas são duas formas distintas de ver a Humanidade)... então diga-me: acha que a despenalização do aborto dessas mulheres com vida "madrasta" (que as há, e muitas, reconheço) vai melhorar a sua condição a longo prazo?
Explico melhor: uma mulher sem condições económicas que aborte, volta para casa e encontra a mesma pobreza de sempre. Uma mulher vítima do marido aborta e volta para casa e encontra a mesma violência doméstica de sempre. Ou seja, só paga a factura o indivíduo mais inocente do quadro. Será que a "opção" não será um bocado de fachada? Uma mulher que, de outro modo teria um filho e o amaria, é obrigada a "optar" pelo aborto devido às circustâncias da Sociedade! E será que a opção será toda da mulher? Com a despenalização, não existirão mulheres obrigadas a "optar" pelo aborto pelos companheiros (que não querem responsabilidades) ou pelos pais (em nome da "honra" familiar)? Como vai vexa monitorizar isto?
Como vexa o diz deve haver direito à opção "quando todas as possibilidades e soluções estiverem esgotadas"! Mas é esse o problema! Não estão esgotadas! Não estão esgotadas de todo! Nem sequer existem (não resisto à ironia... foram abortadas)! Acho que é mais preemente e urgente modificar os temas consensuais ANTES de partir para os fracturantes! É por isso (por achar que o aborto é apenas um paliativo narcótico) que voto Não! Espero que compreenda o que lhe tentei transmitir...
Cumprimentos
 
E só para complementar o meu comment anterior R.
É um bocado desencorajador ouvir adeptos do Sim falar de "forte campanha preventiva, de planeamento familiar e educação sexual" e depois, em posts sobre a adopção em que, provavelmente estamos de acordo, apelidar as ideias de "romÂnticas". Antes de os adeptos do Sim partirem nesta cruzada pela despenalização (que, no início, há de ter surgido como inalcançável), não teria sido mais fácil e menos "utópico" exigir melhorias no processo de adopção? É que é uma excelente solução: os pais adoptivos sustentam a gravidez da mãe e cuidam da criança depois do parto! Com esta saída ficam todos a ganhar e não há quebras éticas nem "fracturas" sociais!
 
Caro Kephas, compreendo o teor da sua opinião, e respeito-a, mas como sabe possuo um ponto de vista diferente. Penso que não merece a pena voltar a enumerar os "itens" da minha posição uma vez que já está familiarizado com a mesma. Quando apelidei a a adopção de "romântica", foi no sentido deste país possuir uma política extremamente deficitária, já para não falar de irresponsável, no âmbito da adopção e da protecção de menores. Por conseguinte, não acredito que constituísse uma solução viável; porque tal como referiu num outro comentário dirigido a mim, que não confia em algumas das mulheres que eventualmente recorressem a Ivg, também não tenho razões para confiar que este processo adoptivo fosse o melhor para as "futuras" crianças, ou que alguém fosse
"lutar" para que o mesmo se concretizasse. Referiu: "Antes de os adeptos do Sim partirem nesta cruzada pela despenalização (que, no início, há de ter surgido como inalcançável), não teria sido mais fácil e menos "utópico" exigir melhorias no processo de adopção?" pergunto-lhe:se acredita que esta solução constitui a melhor e, sabendo o senhor que os abortos continuarão a existir mesmo que o "não" ganhe, que pensa fazer - como adepto do não e da defesa da vida dos embriões - para tornar real esta possibilidade para as mulheres? Se não me falha a memória, há oito anos atrás o "não" ganhou em referendo, não me recordo que tenha existido posteriormente ( e durante todos estes 8 anos) algum tipo de pressão ou luta, por parte dos votantes do "não", para tornar o processo da adopção ao nível que referencia uma possibilidade para as mulheres que decidissem não querer ter uma criança. Que razões terei eu, hoje, para acreditar que se o "não" ganhar, vexas se mobilizem no sentido de tornar isto possível, e não se congratulem apenas com a vitória da vossa posição? Ou acha que somente os adeptos do "sim" deveriam defender esta solução? lamento mas não confio, nem acredito, e sou a favor da despenalização da Ivg independentemente da política da adopção praticada, ou futuramente praticada no País. Acredito sim, que se o Sim ganhar o Estado vai ser obrigado a apostar numa política preventiva maior, mais abrangente e mais activa, como aconteceu nos restantes estados-membro que legalizaram a IVG. Espero que tenha percebido o que quis dizer. cumprimentos
R.
 
Cara R.
Quero que saiba, desde já, que também respeito a sua opinião: foi a única, até agora, que me respondeu sem insultos aos meus comments!
Mas deixe-me apontar-lhe algumas coisas com as quais não concordo (afinal estamos aqui para debater):

1. "também não tenho razões para confiar que este processo adoptivo fosse o melhor para as futuras "crianças"...": gerar um filho, qualquer um o faz, mas adoptar uma criança significa, à partida, algum grau de altruísmo e auto-sacrifício. De resto, muitos dos pais adoptivos não podem ter filhos por qualquer meio natural ou artificial, pelo que penso que sabem à partida o valor de um filho. Poderá haver pais que não estão à altura... mas eu confio mais neles do que em qualquer mulher que decida pelo aborto na sua consciênca! Trata-se de gestos de boa fé, que reforçam a confiança! Não faz sentido dizer que a adopção seja o "melhor" para as crianças, quando a alternativa é a "morte" (não existÊncia, digamos assim)!

2. Quanto ao Não não ter feito muito pelo processo adoptivo nestes 8 anos, admito, é uma lacuna! Mas fácil de resolver... já temos associações criadas e podemos, através delas, fazer pressão política nesse sentido!

3. De resto, não é justo falar nesta "passividade" do Não relativamente aos problemas sociais das mulheres... enumero-lhe as seguintes organizações: Ajuda de Berço; Vida Norte; SOS Vida - Apoio à Grávida; Vinha da Raquel e tantas outras... pode ver uma lista maior com respectivos sites para maior informação em http://paginasvida.no.sapo.pt/apoioavida.htm.

Como eu já disse, a confiança baseia-se em sinais de boa fé! O Sim tem algum para mostrar? (esta não é uma questão provocatória, apenas quero ver se estamos todos a puxar no mesmo sentido)
Os meus votos de um Feliz Natal para todos!
 





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