Agradecendo a Mafaldinha...
Começo por um agradecimento. Sincero. Porque adoro a Mafaldinha.
Continuo com um pedido de desculpas. A minha resposta tarda, porque só agora tomei conhecimento da dedicatória. Confesso a minha ignorância: não fazia ideia da existência de um blog chamado Câmara Corporativa. Para alguma coisa já serviu o acantonamento dos galácticos do sim.
Sigo em frente para lhe responder, directamente, e no mesmo registo tópico.
Continuo com um pedido de desculpas. A minha resposta tarda, porque só agora tomei conhecimento da dedicatória. Confesso a minha ignorância: não fazia ideia da existência de um blog chamado Câmara Corporativa. Para alguma coisa já serviu o acantonamento dos galácticos do sim.
Sigo em frente para lhe responder, directamente, e no mesmo registo tópico.
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1. Tem a certeza que percebeu o que eu lhe disse? A ordem jurídica distingue-se claramente da ordem religiosa. O que não quer dizer que não haja pontos de contacto entre elas. Que, aliás, são naturais. Porque, e recusando um positivismo legalista que fez escola noutros tempos mas se encontra hoje superado, o direito tem um fundamento material que, entroncando no entendimento hodierno do ser humano como pessoa, não deixa de receber a influência da civilização judaico-cristã. Donde resulta, claramente, que um comportamento pode ser, em simultâneo, jurídica e teologicamente relevante. Caso paradigmático é o homicídio. Pelo que eu pergunto, por que razão é ilegítimo perspectivar-se o aborto como um assunto que reclama uma resposta juridicamente cunhada? Para lhe responder que não é. Basta ter em conta as condições de emergência do direito – desde a condição mundanal à condição antropológica, sem esquecer a condição ética, que lhe comunica a sua intencionalidade específica – para perceber isso. Pelo que recuso que utilizem a condição de católicos (entre os quais eu me incluo) como um anátema que nos retire capacidade argumentativa.
1. Tem a certeza que percebeu o que eu lhe disse? A ordem jurídica distingue-se claramente da ordem religiosa. O que não quer dizer que não haja pontos de contacto entre elas. Que, aliás, são naturais. Porque, e recusando um positivismo legalista que fez escola noutros tempos mas se encontra hoje superado, o direito tem um fundamento material que, entroncando no entendimento hodierno do ser humano como pessoa, não deixa de receber a influência da civilização judaico-cristã. Donde resulta, claramente, que um comportamento pode ser, em simultâneo, jurídica e teologicamente relevante. Caso paradigmático é o homicídio. Pelo que eu pergunto, por que razão é ilegítimo perspectivar-se o aborto como um assunto que reclama uma resposta juridicamente cunhada? Para lhe responder que não é. Basta ter em conta as condições de emergência do direito – desde a condição mundanal à condição antropológica, sem esquecer a condição ética, que lhe comunica a sua intencionalidade específica – para perceber isso. Pelo que recuso que utilizem a condição de católicos (entre os quais eu me incluo) como um anátema que nos retire capacidade argumentativa.
2. E se o aborto tem relevo jurídico, é juridicamente que eu o discuto. Pelo que, e dado situarmo-nos no âmbito do direito penal, se devem ter em conta as duas categorias de legitimação da sua intervenção: a dignidade penal do bem jurídico e a eficácia. Esperando que não restem dúvidas quanto à primeira (até porque o ordenamento jurídico globalmente considerado reconhece direitos aos nascituros, inclusivamente direitos de personalidade, entendendo a melhor doutrina que o artigo 66º, nº2 do Código Civil tem o seu âmbito de “aplicação” restringido aos direitos de natureza patrimonial), centrar-me-ei na segunda. A eficácia. Relembro que o teste que lhe é dispensado, na sua enunciação teórica, passa pela indagação da existência ou não de algum meio que permita tutelar aquele bem jurídico de uma forma menos gravosa para o agente perpetrador do facto. E não consigo discernir nenhum. Para mais num país em que, segundo a racionalidade económica erigida pelo decisor público, inexiste uma política social de apoio à maternidade, para sobrarem medidas que garantam o financiamento do aborto. Acresce que o seu discurso acerca das precárias condições do aborto clandestino e a salvaguarda da integridade física das mães, sendo meritório (e digo-o sem qualquer laivo de ironia), não me convence. Por um motivo muito simples. Ele faria sentido se a mulher fosse forçada ao aborto. Não o é. Nem o pode ser. Porque joga aí a sua responsabilidade. A gravidez é o resultado do exercício livre do seu direito à autodeterminação sexual. Há formas de, responsavelmente, evitar uma gravidez. E mesmo que o negue (e já lá vamos), mesmo que não concorde ou entenda ser uma incoerência do sistema (por falar em incoerência, podia-me responder ao que todos omitem: o que fazer se uma mulher quiser abortar e só o descobrir depois das 10 semanas?), existem pílulas do dia seguinte. Querer avocar para a discussão argumentos válidos nas décadas de 50 ou 60 pode não ser logrado.
3. A criminalização do aborto é civilizacionalmente a única resposta possível. Porque é a única que não transforma a mulher num objecto, fazendo dela pessoa – porque a chama à responsabilidade de assumir uma gravidez que resulta da sua actuação livre –; porque é a única forma de proteger a vida do embrião (o número de abortos aumenta com a liberalização, como pode constatar pelos dados que foram já divulgados. Não os tenho comigo, pelo que pedia que fizesse uma consulta aos textos anteriores colocados no blogue do não); porque é a única que força a sociedade a – fazendo apelo à ideia de solidariedade – dar uma resposta, a montante, procurando uma forma de contornas as causas que estão na base do aborto.
4. As pílulas do dia seguinte vendem-se livremente e são distribuídas gratuitamente nos centros de saúde. Ninguém coloca a hipótese da sua criminalização. Donde, meu caro Miguel, não faz qualquer sentido estar a analisar o problema do ponto de vista da tentativa impossível. Questionar teoricamente a construção do artigo 23º Código Penal é tão pertinente a este ensejo como a propósito da compra de bolos. Porque, para que aquela possa ser equacionada, tem que existir a tipificação de um comportamento como penalmente relevante. Por isso lhe pedi que não se ativesse ao direito positivo e se situasse previamente. E, nesse diálogo apriorístico, pergunta-me se estarei a ser coerente quando afirmo que o aborto deve ser crime e a utilização de pílulas do dia seguinte não. Ao que lhe respondo que, e deixando de lado as minhas convicções pessoais (vê como os defensores do não conseguem traçar a linha de fronteira entre a sua crença e a mobilização do sistema normativo já constituído e a constituir), não há qualquer incongruência sistemática insanável. Em termos dogmáticos essa compatibilidade explica-se pela delimitação temporal da tutela do bem jurídico vida intra-uterina, a coincidir com a nidação (para que não me acuse de sonegar informações bibliográficas, é verdade que Figueiredo Dias afirma claramente ser a nidação o momento do início da vida intra-uterina. Mas o mesmo autor refere “em geral, a literatura portuguesa afirma o momento inicial da tutela penal a partir da fecundação”). Num pensamento de segundo grau, que nos remeta para as razões da exclusão daquele comportamento do âmbito de tutela predisposta pela legislação criminal, não se fala da inexistência do objecto ou da possibilidade de, e passe a aparente contradição, punibilidade de uma tentativa impossível, mas, outrossim, da consideração da verificação em concreto daquelas duas categorias de legitimação da intervenção criminal. Para se chegar à conclusão que elas não estão presentes. Mas vai-se mais longe e confere-se um direito, comprovado pela distribuição gratuita dos ditos medicamentos, pelo que, e de acordo com uma possível interpretação do sistema de normas na sua remissão para os princípios, há que ter em conta a inexistência do próprio bem jurídico (o que só se compreenderá pelo mecanismo de actuação das ditas pílulas).
5. Finalmente, não enterro o direito. Longe de mim fazê-lo, até porque vivo diariamente e em perfeita comunhão com ele. Vivo-o e respiro-o, ao ponto de dele não me conseguir ver livre na blogosfera, maçando tudo e todos. Simplesmente, há um dado que acho que o Miguel não percebeu. Independentemente do direito que existe, é legítimo aos autores criarem quadros dogmáticos de densificação do estrato das normas, ao mesmo tempo que é possível proporem, no plano do direito a constituir, mudanças. Nunca ninguém lhe disse que havia autores a proporem que, de acordo com a legislação existente, as pílulas do dia seguinte ou os dispositivos intra-uterinos fossem tidos como objectos de perpetração de um crime. Podem é criar diferentes teorias para as explicitar. São as maravilhas operadas pelos juristas.
6. E agora, choque, terror e horror. E se eu lhe disser que há autores (Castanheira Neves, Pinto Bronze, entre outros) que sustentam que metodologicamente é impossível afastar a analogia da concreta realização do direito penal, por ser ela conatural à concreta racionalidade que perpassa todo o discurso do decidente, apenas sendo possível dar cumprimento ao princípio da legalidade criminal em termos dogmáticos? Acalme-se. Recuperado do choque, devo dizer-lhe, para bem da sua tranquilidade, que não se nega a importância vital do referido princípio, visto como um bastião do estado de direito, e se tem em conta a dicotomia entre analogias mediatas e imediatas, não se permitindo uma punição que não encontre num tipo legal incriminador o seu imediato critério.
Foi um prazer dialogar com o Miguel. Para qualquer desenvolvimento metodológico acerca de interpretação, analogia, bem como explicitação filosófica de alguns pressupostos jurídicos, é só avisar.