Ana e os 64 comprimidos

A Fernanda Câncio é mestre no apelo ao sentimento. E portadora de uma infindável panóplia de histórias que a todos suscitam misericórdia.
Hoje, porém, na incansável luta pela inscrição, no nosso ordenamento jurídico, de um direito fundamental ao aborto, a conhecida jornalista de causas deu um tiro imenso no pé.
Vamos aos factos.
Ana, grávida de 20 semanas, acaba por morrer na sequência de complicações resultantes de um aborto quimicamente induzido.
Terá Fernanda Câncio noção que, independentemente da alteração legislativa, provocar a morte de um embrião depois das 10 semanas de gestação continuará a ser crime?
Adianta-se a colunista, antecipando a exortação dos defensores do “não” e denunciando as verdadeiras intenções dos que se situam do lado de lá – não se quedam as suas preocupações na abolição da pena de prisão para as mulheres que abortam, mas, outrossim, e numa clara incompreensão do momento relevante do exercício da autodeterminação sexual, de, desresponsabilizantemente, achar que este só é salvaguardado com a legitimação da morte de outro ser humano.
De outro modo, não se perceberia a sua referência ao facto de a dramática situação se poder ter evitado caso Ana tivesse, de pleno direito, recorrido a um hospital até às 10 semanas de gravidez.
Acontece que Fernanda Câncio ainda não percebeu o essencial. Quando Ana toma 64 comprimidos para provocar o aborto, assume um risco em relação a ela própria e, simultaneamente, age no sentido de tirar a vida a outro ser humano diferente dela, único e irrepetível.
É a vida deste ser humano que queremos preservar.
Sem que isso nos conduza à frieza de raciocínio de quem abdica de pensar na mãe.
Simplesmente, temos em conta alguns dados imprescindíveis para quem queira sobre estas matérias olhar do ponto de vista de um jurista comprometido com a verdadeira juridicidade.
Nada legitima a supressão de uma vida humana. E é de uma vida humana que se fala quando se pensa em quem está no ventre materno.
Nenhum problema se resolve pela criação de outro problema. Para as situações em que a vida da mãe esteja em perigo, o direito penal retrai-se, não exigindo algo que ultrapassa as normais capacidades humanas. Mas se sobre essa vida não pende, inexoravelmente, o perigo de grave lesão por que motivo se há-de permitir que, sem invocação de qualquer razão, se aniquile uma outra.
Dir-me-ão que, mesmo que exista a proibição, a mulher continua a recorrer ao aborto clandestino, condenando-se, assim, à sua morte eventual.
Volto a sublinhar que se trata aqui de uma auto-colocação em risco que só a ela pode ser imputada.
E uma auto-colocação em risco que pode e deve ser evitada.
Pessoalmente, pela mulher que, contra o que insistentemente sustentam, tem todas as condições para se autodeterminar sexualmente, pelo uso de contracepção adequada no momento da relação sexual, segundo uma lógica inerente ao agir humano que passa pela ponderação de riscos e benefícios.
Colectivamente, pela imperiosa necessidade – solidaristicamente cunhada – de suporte e apoio da maternidade de todas aquelas mulheres que, querendo, não dispõem de meios para prover ao sustento dos seus filhos.
É isto que o sim quer subverter. Esta límpida ideia de responsabilidade que a todos deve animar. A responsabilidade de todos perante cada um, não condenando ninguém à solidão de um aborto. A responsabilidade de cada um diante dos seus próprios actos.
Acresce que a Ana da nossa história tinha 14 anos. Era, como salienta a nossa jornalista de causas, inimputável penalmente. Não é a punição, a prisão, tão invocada, que entra em cena. É a própria possibilidade de, na praxis do dia a dia, aquela criança ter acesso ao SNS para abortar. E aí o discurso padece de vícios graves. Pois, autistamente, olvida a realidade. Sendo menor, nunca a intervenção seria feita sem autorização dos pais. Que, se não na hipótese concreta, na maioria dos casos, seriam aqueles a quem mais ardentemente Ana pretendia esconder a situação. Havendo a cumplicidade dos pais, talvez não tivesse a criança tomado 64 comprimidos, e tivesse abortado com uma menor dosagem de medicação.
O que me suscita algumas questões: será esta história verdadeira? Como conseguiu a criança adquirir o composto químico? Haverá algum cúmplice na trama? Terá havido negligência de algum farmacêutico? Terá Ana conseguido adquirir o medicamento com a conivência silenciosa de alguém que, a pretexto da ajuda, se esconde numa rede informática, fornecendo meios para a prática abortiva?
Tudo isto, martelando o espírito de quem seja mais atento, mostra inequivocamente o que nos separa do “sim”. A par de princípios diversos, há todo um mundo anímico que nos distingue. Não é a lei actual que cria um problema como o que é relatado. É a realidade que o suscita. E perante esta não baixamos os braços, procurando, antes, novos caminhos, que não ponham em causa o ser humano que vive no interior do corpo materno.
Do lado de lá, impera o desânimo, erige-se a desistência em palavra de ordem. E, ao melhor jeito das avestruzes, esconde-se a cabeça, pensando que a abdicação dos princípios resolve os males.
Não é a lei actual que gera uma situação como esta. Até porque, como a Fernanda Câncio admite, se fosse caso disso havia sempre a possibilidade de se invocar a saúde psíquica da menor. É a realidade que a suscita. E essa não se muda por determinação legislativa.

Comentários:
olá
Vida Sempre...
Existe um novo hino para a campanha pela Vida:

http://guardavida.blogspot.com

Vamos todos Cantar a vida.

Carlos Duarte
 
Quando li esse artigo da Fernanda Câncio, questionei-me como era possível alguém ser tão falho de inteligência e tão autista. A única resposta possível é que se trata de estratégia. Consciente da falta de substância do que tem para dizer, confia na ausência de contraditório que um artigo de jornal permite para fazer passar a mentira e o absurdo por argumentos. É simplesmente lamentável que tal pessoa receba dinheiro para mostrar tão pouco respeito pelos leitores de um jornal de referência.

Felizmente, ainda vão aparecendo nos jornais uns artigos a favor do "não". Recomendo a leitura do artigo Muitas perguntas poucas respostas (2), de Maria José Nogueira Pinto, também no DN de hoje.
 
A Mafalda tocou agora no que penso que é o principal defeito do sim. Desistem de lutar. Lutar contra tudo o que está mal, desde as políticas de apoio à família, às leis laborais, à educação sexual, e podia continuar por aqui fora nas lutas que necessitamos fazer.
Parece que dizem tomem lá a IVG que não temos tempo para resolver o de facto está mal.
 
Excelente argumentação.

Sou brasileiro mas torço e rezo para que vocês portugueses consigam dizer "NÃO" à despenalização do aborto.
Meus parabéns pelo ótimo blogue!
 
F.C. continua no seu pedestal a considerar-se, ela própria, mais do que realmente é [aliás, quem era ela antes de ser "descoberta" pelo nosso "primeiro"?]. Continua a insistir nas histórias de puxar a lágrima ao canto do olho, tão ao jeito dos ilustres e tolerantes moralistas "benneton".
E como cada um pode contar a história que conhece (ou não), segue aqui mais uma:
Fernanda, chamemos-lhe Fernanda, tinha 20 anos quando "tudo" aconteceu. O "tudo" foi engravidar.
O "tudo" foi receber do namorado o convite para ir a algum lado com ele e "despachar" o assunto; foi ouvir da mãe que era o melhor que tinha a fazer, para não comprometer o fim do curso de gestão(aliás brilhante) e o MBA que nos Estados Unidos que se adivinhava. O "tudo" foi sentir-se empurrada para dentro do carro da mãe, que era maior e mais confortável, e ir ouvindo a conversa do namorado e da mãe, fingindo que era tudo uma coisa banal, um simples passeio até uma clínica segura. Depois a sala, fria, e a dor, imensa.
Mas o "tudo" foi a dor que não passava.
A Fernanda morreu com 20 anos. Eu prefiro imaginar que ela morreu algures entre a janela do 12.º andar e o chão, onde o seu corpo caíu. O namorado e a mãe acho que, ainda hoje, preferem pensar que ela "escorregou".
 
Esqueceram-se do 'desmanche', usado no Portugal rural, pelos portugueses não livres!

Maria dos Santos Silva
 
Continuamos, impávidos, a assistir à desinformação que a grande maioria dos "jornalistas" nos impingem. Fabricam histórias inimagináveis para vender todo o peixe podre que lhes parece mais propício para atingir os seus fins.
Para eles o que é fundamental é convencer toda a gente, seja a que custo for, para se portar como o "Estado" pretende.
Seguramente, têm quem lhes pague e bem.
 





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