Cardeal Patriarca, aborto e pílula do dia seguinte

Muito se tem falado na Igreja Católica.
Diria mesmo que a Santa Madre Igreja ocupa tanto o espírito dos não crentes como o dos crentes. É uma espécie de desporto nacional dizer mal da crença, da doutrina, das recomendações, venham elas de Roma, ou sejam circunscritas ao território português.
Concretamente na questão do aborto, adoram falar da Igreja. Ora porque têm medo (diria que têm mesmo muito medo) da influência que a pregação de consagrados e leigos possa ter junto de um povo que, maioritariamente, é católico. Ora porque, sabendo que o Estado (não confundir com a sociedade civil) é laico, querem acantonar a discussão no interior do templo.
A percepção da falência da estratégia tentada deixa-os, depois, enfurecidos.
Vamos, então, tentar perceber alguns pontos importantes:
1º O problema do aborto tem relevo para a Igreja Católica (e bem assim para qualquer religião)? Tem, claramente.
2º Isso faz da questão do aborto uma questão meramente religiosa? Não, obviamente que não. Se assim fosse (se colhesse mais esta falácia do “sim”), ter-se-ia que considerar que o homicídio, o furto, a violação eram matérias eclesiásticas estritas, inviabilizando-se a acção tuteladora do ordenamento jurídico.
3º O aborto envolve uma questão jurídica? O Estado tem legitimidade para legislar sobre o aborto? Claro que tem. Nem sequer vou recapitular o fundamento desta minha afirmação, porque já o fiz vezes sem conta. Limitar-me-ei a recordar que depois das 10 semanas o aborto continua a ser crime, ainda que o referendo conduza a uma alteração legislativa. Se o Estado não tem legitimidade para criminalizar o aborto até às 10 semanas (porque se trata, segundo tentam fazer crer, de uma solução imposta pela moral religiosa) como adquire essa legitimidade às 10 semanas e um dia de gravidez?
4º Se o aborto envolve – a par do cunho religioso – uma matriz juridicamente cunhada, pode ser abordada segundo as duas perspectivas.
5º Se assim é, a Igreja tem todo o direito (e mesmo a obrigação) de se referir à temática segundo esse duplo olhar. Dirigindo-se aos seus fiéis, em público ou em privado, podem e devem os seus membros aconselhá-los segundo a moral cristã, como fazem – sem que isso cause escândalo – sobre os mais diversos temas. Ouve quem quer, deixa-se influenciar quem quer. Segue os mandamentos quem quer. Numa palavra é católico quem quer.
6º Dirigindo-se aos eleitores portugueses em geral, os membros da Igreja Católica abordam a questão segundo um prisma ético e jurídico, e deixam de lado a visão de Cristo. É de acordo com estas linhas mestras que se percebe a posição do Senhor Cardeal Patriarca quando afirmou que a Igreja não se iria envolver na campanha, deixando esse trabalho para os seus membros. E é como tal que se recebem as suas comunicações semanais. Criticável? Jamais. Se todos, desde os mais esclarecidos aos menos, têm direito a falar sobre o assunto, por que razão haveria de um cidadão, só por ser Cardeal, de ser condenado ao silêncio?
7º Quando lemos as suas mensagens, temos de ter a inteligência (a Joana Amaral Dias não a teve) de compreender o papel em que D. José Policarpo surge investido: o de cidadão e não de sacerdote. As suas palavras dirigem-se a todos e, porque nem todos possuem o dom da fé, D. José Policarpo parte do ordenamento jurídico que é. E toca num ponto extremamente importante. A pílula do dia seguinte. Para um crente, o seu uso consubstancia um pecado, a ser resolvido ou não – segundo a liberdade de cada um – em confissão. Para um não crente, a aquisição e consumo de uma pílula do dia seguinte é um acto lícito. E, por mais que os arautos do sim o neguem, é um excelente argumento para este lado da barricada. Pois que, quando todos os métodos contraceptivos falhem, há sempre esse expediente de último recurso. O que só mostra que a invocação da falibilidade das pílulas e preservativos não colhe. O grande problema é que os senhores do sim ficaram presos no tempo e se esquecem que a discussão não pode ser tida com base nas premissas que eram chamadas à colação há anos atrás. Deviam fazer um pequeno esforço de revisão e actualização do argumentário.
8º Perguntar-se-ão se não é contraditório o mesmo ordenamento jurídico criminalizar um aborto até às 10 semanas e permitir que uma mulher tome uma pílula do dia seguinte. Sobre isto, e no mesmo registo esquemático, algumas observações:
a)Se eu votasse sim, tentava não apontar essas supostas incongruências. Por um simples motivo. Porque até hoje nenhum dos senhores conseguiu explicar por que razão há-de ser um aborto um direito até aos dois meses e meio de gravidez e há-de passar a ser crime, punido com pena de prisão, às 11 semanas de gestação.
b) Depois porque o nosso ordenamento só dispensa, segundo a doutrina maioritária, tutela à vida intra-uterina a partir do momento da nidação (implantação do zigoto no útero materno), por uma questão que juridicamente se reconduz à ideia de necessidade de pena e materialmente se pode entender – fazendo desaparecer a suposta contradição – pela alea que envolve o seu uso, ao contrário do que ocorre na situação do aborto. Dito de outro modo, só faria sentido criminalizar o uso de uma pílula do dia seguinte se a mulher estivesse grávida. É condição básica da intervenção do direito penal a existência de um bem jurídico. Ora, não tendo a relação sexual do dia anterior resultado na fecundação do óvulo pelo espermatozóide, inexistiria o bem jurídico. Como pelo mecanismo próprio de funcionamento daqueles comprimidos jamais a mulher que a eles recorra pode saber se tinha havido ou não concepção, entendeu o nosso legislador que não faria sentido a criminalização. No caso do aborto, a existência do bem jurídico é uma evidência. Aborta – dolosamente (e só há criminalização do aborto se o comportamento for intencional) – quem sabe estar grávida.
9º Espero que quem acha que, com meia dúzia de trocadilhos, aniquila a posição do Senhor Cardeal Patriarca consiga entender estas já longas linhas.

Comentários:
Mafalda, a contestatária.
O Cardeal Patriarca, D. José Policarpo, não poderia ter arranjado representante mais extravagante do que a contestatária Mafalda para falar por si na blogosfera. Mafalda é prolixa e combativa. Tenho de concordar até que sabe algum direito. Mas assimila mal as coisas. Fala pela rama e não é capaz de raciocinar em profundidade quando é preciso.
Que diz Mafalda? Veja-se:
1. A interrupção voluntária da gravidez é uma questão religiosa, mas não é só religiosa. Pois claro! Aí joga-se uma contradição conhecida. A Igreja parte da ideia de que a vida, logo após a fecundação, é um bem sagrado porque é concebida por Deus, mas não pode assumir, numa sociedade laica, esse pressuposto. Por isso, a Igreja modifica a sua linguagem e serve-se de argumentos científicos (de preferência argumentos médicos) para intervir na discussão.
Sempre que o faz, jura a pés juntos que a questão da interrupção voluntária da gravidez não é um problema religioso. Mas, então, por que razão intervém como Igreja? A que título se trata do tema nas homilias dominicais? Claro que a azougada Mafalda não vê contradição nenhuma em tudo isto. Mas eu vejo.
2. Também não vê Mafalda contradição entre a admissibilidade da pílula do dia seguinte e a punição da interrupção voluntária da gravidez. Mas devia ver essa contradição. É que a pílula do dia seguinte actua sobre óvulos já fertilizados, antes da nidação. Ora, coerentemente para a Mafalda, a vida tem tanto valor nesse momento como depois da implantação no útero materno.
Claro que a lei penal não vai por este caminho. Ao contrário do que Mafalda afirma, não é uma questão de “doutrina maioritária”. A lei diz claramente que o aborto é um crime contra a vida intra-uterina. Alô, Mafalda, vida intra-uterina quer dizer vida dentro do útero, está bem?
Além disso, Mafalda, como a senhora é especialista em direito, não confunda “bem jurídico” com “objecto de acção”. “Bem jurídico” existe sempre, mesmo numa tentativa impossível de homicídio, que seja punível ao abrigo do artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal. O que Mafalda quer dizer é que, na pílula do dia seguinte, não se pode provar que haja “objecto da acção”, o que não impediria a punição por tentativa (se a tentativa fosse punível nos termos gerais). Não tem de quê, Mafalda. Escusa de agradecer esta reciclagem gratuita.
É claro que a Mafalda sempre pode ir dizendo que, no caso da pílula do dia seguinte, nunca se prova que haveria um óvulo já fecundado. Mas era coerente com as suas posições fundamentalistas que se previsse até a punição da mulher grávida por tentativa. Vamos fazer uma campanha por isso, Mafalda?
3. Mafalda, especialista em descobrir o que mil pessoas antes de si já descobriram, vem dizer que os adeptos do “Sim” não conseguem explicar a fronteira das dez semanas. Conseguem, Mafalda. O óvulo fecundado vai-se desenvolvendo. Às 12 semanas forma-se a estrutura cerebral e às 20 semanas começa a actividade cerebral superior. Neste trajecto há uma realidade biológica que se vai desenvolvendo.
Não sabe a Mafalda que o aborto não é punido tão gravemente como homicídio? Acha a Mafalda que, no caso de conflito entre a vida da mãe e a do feto, o médico e o pai podem decidir livremente o que fazer? É óbvio que não, Mafalda! Apesar da vida ter sempre valor, um ser autónomo não vale o mesmo que um óvulo fecundado.
4. Vamos ao essencial, Mafalda. O essencial é que não basta provar que a vida intra-uterina é valiosa para demonstrar que o aborto deve ser sempre punido. O direito penal rege-se pelo princípio da subsidiariedade. Só deve intervir quando isso é necessário e útil para defender bens jurídicos. Assim, as perguntas a que a Mafalda tem de responder são estas:
• Está convencida de que haverá mais casos de interrupção voluntária da gravidez se o “Sim” vencer?
• Aceita que as mulheres, na sequência da despenalização, vão sofrer menos?
• Partindo do princípio de que a pena de prisão não é aplicada, concorda com um direito penal simbólico (que, porém, causa malefícios às mulheres)?
Miguel Abrantes in http://www.corporacoes.blogspot.com
Que tal responder ao Miguel?
 
Respondendo ao Miguel,
1º o homicídio é uma questão com relevo jurídico. Bem como o furto. Não matarás, não roubarás... lembra-se? São alguns dos mandamentos. É por isso que deixam de ter relevo jurídico? Não.
2º O embrião é vida humana? Sim. Sendo vida humana é digna de tutela sim. Até os adeptos do sim parecem defender isto porque admitem a punição do aborto a partir das 11 semanas. Por que razão é que antes disso a questão é meramente religiosa?
3º Não lhe agradeço reciclagem alguma. Especialmente porque acho que devia tentar perceber o que eu digo. Primeiro, leia bem o artigo 23º, nº3 do C Penal. Segundo, deixe de se situar no plano do direito positivo e tente situar-se a montante no plano de política criminal. Verá que aí as minhas palavras sobre o fundamento da não criminalização do consumo de pílulas do dia seguinte fazem sentido.
3º Alô, Miguel, que tal não ser tão agarrado ao que a lei diz? É que, de facto, é uma questão de posição da doutrina maioritária. Há penalistas no nosso país que não subscrevem inteiramente a tese da nidação. Aconselhava-o a ler o Comentário Conimbricense do Código Penal., Verá que aí encontra posições para todos os gostos.
 
E se o "não" ganhar que diferença fará? Ficam contentes uns, apenas isso. As mulheres que abortaram no ano passao, há 3, 5, 10, 20 anos, continuarão a abortar. As que têm sorte ($$) irão de TVG a Badajoz, as outras ficaram pelas suas terras e abortarão como humilhantemente sempre fizeram.
 
Caro João,

esse baixar de braços diante de uma coisa que considera má é algo com que não me conformo. Se considera que o aborto é algo mau, então vamos lutar contra ele, não transformando-o num método contraceptivo de último recurso, mas combatendo as suas causas.
 





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