COLABORAÇÃO ESPECIAL

O Duarte Vilarinho é médico ginecologista-obstetra. A partir de hoje temos a honra de contar com o seu contributo. Aqui fica o seu texto:

"Pediu-me uma amiga que desse o meu contributo, como Ginecologista-Obstetra, sobre este assunto tão delicado que é o aborto, com vista ao referendo que aí vem, já no dia 11 de Fevereiro. Faço-o porque me pediu, mas também porque acho que nós médicos fugimos muitas vezes às questões que possam ter um cariz ético, moral e filosófico, preferindo refugiarmo-nos na vertente científica, muito mais objectiva e onde supostamente não temos tantas dúvidas.

Antes de me referir à parte “técnica” da questão e de cientificamente me pronunciar, quero partilhar aquilo que sinto em relação à oportunidade deste referendo e em relação à reacção das diversas pessoas com quem vou contactando.
---

Assim, tenho alguma dificuldade em perceber o porquê de voltar a perguntar aos portugueses, aquilo a que eles já responderam há relativamente pouco tempo. Houve assim tanta mudança nos hábitos contraceptivos e reprodutivos, a ponto de ter alterado o nosso panorama social e todos os índices de mortalidade e morbilidade materna e neonatal? Não creio, antes pelo contrário, esses índices melhoraram e a lei do aborto que nessa altura surgiu permitiu a “resolução” da grande maioria dos “casos complicados”. E o que dizer sobre as condenações que tem havido no nosso país, para as mulheres e para quem executou os supostos abortos? Insignificantes e sem qualquer alteração relativamente ao que se passava até aqui.
Então, a razão de ser deste referendo não advém de uma necessidade social e sanitária, nem de uma alteração de comportamento da população portuguesa. Será um mero instrumento de luta política, uma promessa eleitoral esgrimida como se de uma arma se tratasse?
É nesta altura que não tenho paciência para falar do assunto e o menor respeito pelo(s) meu(s) interlocutores, que pedem este referendo. É também nesta altura que sinto “autoridade” para falar sobre o aborto e essa sensação nada tem a ver com ser médico obstetra, mas antes com o facto de achar que algumas pessoas não estão interessadas em discutir e resolver o que é possível, mas antes ganhar o debate ou a discussão que se gerou.

Sem dúvida que a pergunta deste referendo apenas “merece” (e é o mais eficaz política e eleitoralmente) ser tratada como uma vitória ou uma derrota de um determinado sentido de voto. Mas esta fútil questão encerra em si mesma assuntos delicados, situações que nos levantam dúvidas e até reflexões que eventualmente se venham a fazer. Deverá pois, haver muita lucidez, serenidade, objectividade e tratar com ética e moralidade os “argumentos” que a vida real teima em lançar.

Utilizo a palavra “testemunho” porque mais importante do que descrever um processo biológico, complexo e maravilhoso, como é a fecundação e a formação do novo ser humano, penso que é transmitir a minha vivência enquanto profissional de uma área da medicina tão delicada e sensível.
A minha família, os meus amigos, a minha educação, a minha formação religiosa e profissional deram-me o privilégio de poder abordar e reflectir sobre assuntos que cruzam a ciência, a ética, a moral, a religião e a filosofia. Muitas vezes sou confrontado com casos difíceis. Também tenho muitas dúvidas e até angústias, mas felizmente tenho Fé e penso que tenho direito a utilizar, natural e conscientemente, essa minha condição na apreciação geral e particular que faço das situações relacionadas com o “aborto”, evidentemente associada a um correcto juízo clínico e científico.
Estou convencido que muitos mais colegas meus, cujas aptidões morais e intelectuais admiro, estariam envolvidos nestas questões e certamente enriqueceriam o verdadeiro debate que se pretende que exista, se tivessem tido um tal privilégio, como eu penso que tive.

Penso que não pode haver dúvidas relativamente à formação do ser humano, ela começa na altura da fecundação, quando ocorre a junção das duas células sexuais: o óvulo e o espermatozóide. Esta é uma realidade cientificamente indesmentível e sem hipótese de ter outra interpretação.
No processo de crescimento e diferenciação que depois se segue é que se podem considerar várias fases, correspondentes ao desenvolvimento dos diversos sistemas e órgãos. Quando é que tem consciência? Na fase de blastocisto de embrião ou na fase fetal? A minha resposta é que há uma personalização gradual desde a fecundação até ao fim das nossas vidas. A nossa personalidade já está perfeitamente estabelecida aos 5 anos? E por essa razão deixamos de ser um ser humano? Claro que não, somos um ser humano desde o princípio até ao fim da nossa vida.
Perante esta evidência o que pensar, à luz da pergunta do referendo (“concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas…”), sobre uma gravidez com 9 semanas e 6 dias? Não é um ser humano ou a sua fase de diferenciação não lhe dá direito a ter “consciência”? E se for uma gravidez com 10 semanas e 1 dia, é crime por causa daquele dia? Já é um ser humano e já tem consciência? O que é que representam as 10 semanas?

Não faz de facto sentido, uma pergunta destas, aparecendo sem qualquer tipo de justificação, nomeadamente a clássica razão “médica” (já de si questionável).

Outro ponto importante a que a pergunta alude é se o eleitor concorda que a “interrupção” seja efectuada em “estabelecimento de saúde legalmente autorizado”. Ora, aqui convém dizer e desmistificar que as mulheres que efectuam os procedimentos diagnósticos e terapêuticos para uma situação de aborto (principalmente se este não ocorreu de forma espontânea), estão sujeitas a bastantes riscos para a sua saúde, nomeadamente para a sua fertilidade futura. E não é o facto de tais actos serem efectuados em estabelecimentos hospitalares que faz desaparecer esses riscos (pode eventualmente diminuí-los). Da mesma maneira que os abortos cometidos, ilegalmente, em clínicas preparadas para o efeito têm implicações (do ponto de vista estritamente técnico) muito semelhantes às de um hospital. Daí que o aborto, pelo facto de ser ilegalmente efectuado, não tem consequências tão dramáticas quanto querem fazer crer, para justificar a sua liberalização. Evidentemente que alguns continuam a ser efectuados sem qualquer tipo de condições técnicas. E mesmo com a liberalização ou despenalização (já me irrita este trocadilho: “quando se puderem fazer abortos à vontade”), vão continuar a existir locais onde se fazem os tais abortos sem condições, mesmo que sejam legais, pois é muito mais fácil ter uma “casa” adaptada para o efeito do que montar uma “clínica” sofisticada do ponto de vista técnico.

Na minha prática clínica assisti que com o avanço do tempo de gestação, durante o qual se podem efectuar abortos por “doença grave e/ou malformação congénita”, que na actual lei vai até às 24 semanas, também se vai “alargando” o leque de situações merecedoras de apreciação pelas “comissões de interrupção da gravidez”.
Lembro-me bem da “ginástica” que as referidas comissões faziam, relativamente ao tempo de gestação, quando a lei apenas permitia aquele tipo de actuação até às 12 semanas.
É fácil perceber que anteriormente muitas dessas patologias fetais, não chegavam a ser diagnosticadas a tempo de se proceder à interrupção terapêutica da gravidez (ITG) e que com o alargar do prazo aumentou, não só o número global de ITG, mas também o tipo de malformações/doenças que estavam “contempladas” na lei. Passou-se a ser gradual e inconscientemente (julgo eu) mais permissivo. Esta constatação faz-me pensar que se começamos a liberalizar até às 10 semanas, qualquer dia vai haver necessidade de alargar esse prazo. Para quantas semanas? 16? 24? 28?
Esta onda tem que ser travada e mesmo que não se partilhem dos mesmos princípios, tem que haver uma cooperação entre as várias entidades que abordam este tema.

Relativamente aos abortos por “razão médica”, embora esta não interesse à pergunta do referendo, devo dizer que é nesta área que nós obstetras somos confrontados com as situações mais delicadas. Não vou aqui particularizar, mas os casos reais, por vezes, “têm” argumentos de difícil resposta. Esta dificuldade não é ajudada pela cultura do consumismo e do egoísmo das sociedades de hoje, e as alternativas ao aborto não são colocadas de uma forma credível, porque são poucas e representam dificuldades e sacrifícios para todos. Eu, como médico, sinto-me também (infelizmente) envolvido nesta teia de raciocínio.
Vou lutando como posso e este meu testemunho apenas pretende ser um contributo para que outros também lutem, para que se encare o aborto como um assunto sério e para que neste referendo se responda negativamente a uma pergunta que resulta das “lides políticas” e não de uma necessidade social e/ou sanitária."

Comentários:
Doutor:

A 80 ou 100 euros por consulta de meia hora imagino que um médico pouco poderá fazer pelas pacientes mais carenciadas. Sendo assim arrisca-se o dito clínico a ter uma visão distorcida dos factos, porque ou lida com situações extremas nos hospitais (decorrentes da forma como a lei actual é entendida pelos colegas), ou encara a vida pelo prisma das clientes em situação financeira mais desafogada.
 
Como jovem médico que sou queria só relembrar ao colega que a minha idade (27 anos) é contada desde o meu nascimento e não da minha concepção. Óvulo fecundado=criança??? Por favor!
 
Todos nós sabemos que grande parte dos médicos, senão a maioria, explora comercialmente os doentes que os procuram. No entanto, creio que essa é uma questão que nada tem a ver com o aborto - que é um crime porque mata um ser humano.
Se calhar, melhor seria o Zé Pagode insurgir-se quanto ao modelo de assistência médica de que precisa e recusar-se a pagar o que lhe é exigido - não pagando -, tanto na medicina privada como - e principalmente - pela pública.
É o que eu faço...
 





blogue do não