Individualismo anti-individualista

O António Costa Amaral, aka AA, escreveu há dias que:

No refendo que se debate, estão em confronto, entre outras, duas posições políticas:
- o progressismo de quem quer fazer do Aborto um "direito social". Trata-se, por outras palavras, do mesmo socialismo romântico e redentor que promete libertar o Homem de amarras biológicas e sociais, e construir um Mundo "mais justo". Porque identifica que a sociedade livre "produz" desigualdades, exige que todas as relações morais e éticas entre indivíduos sejam legalizadas: a liberdade individual deve ser condicionada pelo poder político;
- o progressismo de quem quer construir um Mundo sem Aborto, onde impere um modelo único ético-moral, e não existam relativismos que perturbem uma virtude social devidamente legalizada: a liberdade individual deve ser condicionada pelo poder político.
Ambos os sistemas de ideias são anti-individualistas. De nenhum dos lados se diz "sou livre de pensar e agir pelos meus valores". Diz-se "esta é a Verdade; a liberdade individual é desnecessária; nós temos de o garantir". Critérios infalsificáveis provam a Certeza. Um pensamento único esmaga a liberdade individual de consciência e acção, o próprio livre-arbítrio. São duas posições fundamentalmente colectivistas.

Desconfio que o AA nos enquadra na categoria de progressistas do tipo B. Seremos os tais que "querem construir um mundo sem aborto onde impere um único modelo ético-moral e onde não existam relativismos que perturbem uma virtude social devidamente legalizada". Mas o AA está enganado.

Enganado porque parte do pressuposto, a meu ver errado, de que a lei vigente (e que queremos manter) reflecte um modelo ético-moral único, absoluto, quando, manifestamente, não é o caso. Basta analisar essa mesma lei para verificar a sua natureza compromissória e relativa, bem expressa nas formas diferentes com que, em colisão com outros direitos ou circunstâncias, é protegido o bem jurídico que é a vida intra-uterina.
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De igual modo, o AA faz referência, com algum despeito, à circunstância de a liberdade individual ser condicionada pelo poder político. Julgo que o AA terá alguma dificuldade em encontrar um modelo alternativo ao condicionamento da liberdade individual pelo poder político livre e democrático. Parece-me antes mais útil discutir o âmbito e o grau desse condicionamento que a sua existência. E talvez noutra sede que não a de um blog sobre o aborto. Calculo que até concordaremos na grande maioria dos casos.

Mas mais preocupante é a desconsideração do outro, da vida intra-uterina, cuja existência e alteridade já é reconhecida pela lei, pela ciência e pela experiência. O AA estende a liberdade individual de agir "segundo os valores" próprios a um ponto em que esta colide inevitavelmente com os direitos desse outro que, não obstante gozar de menos direitos e de menor protecção da lei penal, não deixa de ser, de existir, por causa disso. Este pensamento, mais do que a consciência, esmaga esse ser, sem que, para o fazer, pondere sequer na existência de quaisquer razões ou direitos concorrentes.
Ao contrário da actual lei, que o não faz, este individualismo, este livre-arbítrio, é objectivamente anti-individualista porque colide sem mais com a própria existência dos indivíduos. É totalitário.

A propósito disto, lembraram-me, e bem, este excerto que transcrevo:

Recuso a omnipotência da vontade entendida como um poder absoluto e ilimitado, não necessitado de justificação e de impossível justificação. Encontramos as suas raízes próximas no iluminismo. Não no iluminismo das declarações de direitos do século XVIII mas no iluminismo pseudo-científico, matemático, mecanicista, alienante do ser humano. (...) Conducente à física social de Comte e à liberdade humana reduzida à observância das leis da natureza de Lenine. Enquanto que, no outro extremo, pensadores ingleses contemporâneos da revolução industrial isolavam o átomo humano num egocentrismo irredutível. (...)Rejeito o atomismo individualista ou colectivista que nada mais são do que justificações, particularmente eficazes, do desejo de omnipotência. Permitindo que um ser humano não veja limites à sua vontade de omnipotência sobre si mesmo e os outros (...).

Diogo Leite de Campos
A relação da pessoa consigo mesma

João Vacas





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