Mafaldinha

Caro Miguel,

Continuando a agradecer as imagens da Mafaldinha (juro que é uma das minhas personagens preferidas), vou replicar, no mesmo registo tópico. Mesmo achando que, a partir de agora, a discussão pode ficar tão presa a minudências técnicas que poucos estarão interessados nela, considero importante salientar algumas ideias.
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1. Eu nunca lhe disse que os dois planos se confundiam. Se ler com atenção alguns dos textos que aqui escrevi, verá que sempre me esforcei por esclarecer as pessoas que uma coisa é a religião, outra a moral e outra o direito, sendo importante não esquecer que esta tem uma matriz ética que, não podendo ser olvidada, não se confunde com a moral. Mais do que isso, quem insiste em colar a posição do “não” à Igreja Católica são os defensores do “sim”. Compreendo que isso lhes dê jeito. Se colhesse a argumentação, facilmente poderiam dizer que, não encontrando o direito o seu fundamento na invocação teológica, a criminalização perdia o seu sentido. Acontece, meu caro Miguel, que aqui os defensores da liberalização encontram um obstáculo: se o aborto é uma matéria do foro privado e da consciência religiosa de cada um, de onde advém a legitimidade do Estado para criminalizar o comportamento a partir das 11 semanas de gestação? Só isto permite perceber que a questão é jurídica, pelo que, em nome da serenidade do debate, seria bom que, de uma vez por todas, deixassem de usar a falácia que eu tentei denunciar.

2. Acresce que a compreensão da dimensão jurídica do problema nos remete insofismavelmente para a nota de alteridade subjacente ao aborto. Dito de outro modo, o problema não pode ser perspectivado como uma mera questão de consciência individual uma vez que ele implica um confronto entre duas pessoas diversas. Só assim não será para quem entender que o embrião não é um ser humano. Mas aí eu pergunto: é o quê? É vida. É vida humana. Logo, e recusando posicionamentos que negam o reconhecimento de dignidade de pessoa a seres humanos, não poderei deixar de olhar para o embrião como alguém dotado da mesma dignidade que eu e merecedor de tutela do ordenamento. Dir-me-á que essa protecção não é igual à que a nós, seres já nascidos, é dispensada. Pois não. Sem que isso me aflija, porque a protecção dispensada aos menores também não é igual à protecção dispensada aos adultos e aos idosos (falo tendo em conta o ordenamento jurídico globalmente considerado e não especificamente o direito penal), na pressuposição dos ciclos evolutivos do ser humano que não apagam, não obstante, a pessoalidade do mesmo. E porque essa pessoalidade não é apagada, o que já me aflige é que deixe de haver protecção.

3. O Miguel reconhece que a vida intra-uterina tem dignidade penal. Diz-me, no entanto, que isso não implica, segundo um juízo de necessidade, a obrigatoriedade da intervenção penal. Deixando de lado a recente discussão acerca da existência ou não de imperativos de criminalização, em nome de um entendimento do princípio da proporcionalidade que olha para ele não só segundo uma ideia de proibição do excesso (Übermaβverbot), mas também de acordo com uma proibição de protecção deficiente ((Untermaβverbot), admitamos, por uma facilidade argumentativa, que sim. O legislador não é obrigado a tipificar condutas como criminosas porque, à dignidade penal do bem jurídico concretamente em causa, há-de associar-se a nota da eficácia. A ideia de ultima ratio traduz isso mesmo: a intervenção do direito penal só é legítima quando não exista outro mecanismo, menos gravoso para o agente perpetrador do facto, de protecção do bem jurídico. E é aqui que divergimos profundamente. Porque não só não consigo discernir nenhum meio de protecção do embrião que se afaste do mundo criminalmente relevante como, e pese embora não haja, como o Miguel refere, dados seguros sobre o número de abortos clandestinos em Portugal (gosto que o admita, já que o hastear desses números costuma ser uma das bandeiras do sim), estudos comparatísticos demonstram que o número de abortos aumentou nos países em que a sua prática foi liberalizada. Ainda hoje lia no Público que “o número de abortos em Espanha não tem parado de crescer nos últimos anos” e “em França, em 2004 praticaram-se 210664 interrupções voluntárias da gravidez, o que representa um ligeiro aumento”.

4. E, enquanto nas excepções actualmente previstas existe um fundamento para o aborto, por via da exclusão da culpa ou da ilicitude, com a alteração legislativa, a mulher passa a poder abortar independentemente de qualquer razão. E não invoque as situações susceptíveis de gerar misericórdia porque, não só essas podem ser solucionadas com recurso à parte geral do código penal (sendo uma falácia transformar a discussão num discurso próprio de luta de classes ou acantonar o tema do aborto nas situações de pobreza extrema), como, abraçando a racionalidade de legislador, tem de abstrair dos casos concretos e prever toda a panóplia de situações que possam ser assimiladas pela intencionalidade problemática do critério normativo que vai cristalizar. Donde, está a abrir a porta a que uma mulher, porque sim, porque não lhe apetece ser mãe, aborte. Pode ser uma lógica chocante, mas nem por isso ilegítima. Pois se há homicídios por motivos fúteis porque não conceber a existência de abortos por motivos fúteis?

5. Não o queria ofender quando o chamei legalista. Só pedi que não se ativesse ao direito que é e compreendesse que o direito é algo sempre redensificável. O que implica que um jurista possa propor um quadro dogmático de alteração do direito já constituído. Ademais, a norma por si só não nos diz tudo. Incompreenderá o sentido normativo da norma se não a remeter aos princípios sustentadores de todo o sistema. E nessa tarefa pode e deve interpretar aquela norma (ou mesmo corrigi-la, quando tal se afigure possível) conforme as exigências que são ditadas por aquele estrato de fundamentação. Foi isso que fiz em relação às pílulas do dia seguinte. Mas, mesmo que não adira a este posicionamento metodológico, entre nós transmitido por Castanheira Neves e Pinto Bronze, não tente comparar seriamente o momento pré-nidação com as 10 semanas de gestação. No primeiro caso, a mulher não está grávida (volto a sublinhar aqui um dado: vê como os defensores do não conseguem distinguir os planos de argumentação?).

6. E, por mais incómodo que isso seja para o sim, este é um dado incontornável. Volto à ideia da responsabilidade. A mulher exerce o seu direito à autodeterminação sexual. Ninguém quer forçar ninguém a ser mãe. Nem ninguém quer forçar ninguém a cumprir votos de castidade. Cada um actua como quer, com quem quer, quando quer. Mas, e deixando de lado outras considerações acerca daquilo que eu acho ser o correcto entendimento da liberdade e responsabilidade humanas para, e mais uma vez em nome do diálogo, lançar mão de uma visão individualista do mundo, se agiu livremente ela há-de ser responsável pelo resultado da sua conduta. Ora, um resultado previsível do seu comportamento é uma eventual gravidez pelo que ela há-de ser por ele responsável. Tanto mais que, a partir desse momento, existe um outro ser humano, diferente dela. Como garantir, então, que a mulher possa determinar-se sexualmente sem que fique grávida? Pela utilização de métodos contraceptivos. Dir-me-á que podem falhar. Pois podem. Responder-lhe-ei que existem pílulas do dia seguinte como último recurso. E responder-lhe-ei que essa mesma falha pode determinar resultados mais graves ainda, como por exemplo o contágio de uma doença sexualmente transmissível. É a lógica do risco-benefício que está subjacente a qualquer actuação. Permitir que uma mulher actue como ser livre e depois dizer que ela não deve assumir o resultado da sua actuação é desresponsabilizá-la. É usar, em relação a ela, o mesmo discurso que se usa por referência aos inimputáveis.

7. Finalmente, Castanheira Neves e Pinto Bronze não são inimigos jurados da língua portuguesa. Talvez pequem por, na sua genialidade, não estarem ao acesso de todos. Mas isso, meu caro, é defeito de quem os lê e não dos próprios. Recomendo-lhe a leitura de uma das obras do mestre, O princípio da legalidade criminal. Verá, por lá, que a interpretação implica sempre a analogia, pelo que a acrítica e aproblemática prescrição da proibição de aplicação analógica de normas penais incriminadoras e de normas excepcionais há-de ser equacionada de outro modo. Não o maço, contudo, sobre isso. Sobretudo porque, sendo apaixonante, extravasa a discussão já de si complexa acerca do aborto.

Qualquer aditamento pretendido, é só pedir. Não garanto a prontidão da resposta durante a semana, por motivos de trabalho. Mas pedia-lhe um favor. Dado ser possível o diálogo com o Miguel, que tal fazer o favor de explicar a alguns dos seus companheiros de blogue que um ser humano não descende da ervilha. Obrigada.

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