Só outra perguntinha

Caro CAA,

Começo por lhe dizer que não gosto de corrigir tudo e todos. Detesto, por exemplo, ter de corrigir exames, embora a isso esteja obrigada. Depois, porque só tenho de o fazer perante a constatação do erro alheio, o que torna particularmente incómoda a tarefa. Sem que para isso me ancore na minha particular interpretação dos cânones jurídicos. Sou, aliás, pouco adepta de movimentos heterodoxos como o movimento do direito livre. Recuso é, ao contrário de muitos, arreigar-me a uma visão positivista e empobrecedora do direito, para, dentro daquilo que sou capaz, abraçar a verdadeira tarefa judicativa, axiologicamente comprometida, que, no nosso tempo, ao jurista incumbe.
---
Reduzir o direito à lei, fazer dele uma pura forma desnudada de uma intencionalidade específica, radicada na ineliminável dignidade do ser pessoa, é, enquanto tentação desoneradora, uma atitude comum, legando-nos um mundo de “códigos com pernas”.

Não basta saber ler o que está no artigo para se chegar à solução justa, reclamada pela realidade.

Por isso, meu caro CAA, pouco me impressiona o lapso do Dr. Bagão Félix. Poder-me-á dizer que não colhe a argumentação do defensor do Não. Dir-lhe-ei que não colhe para quem se ativer ao preceito que, erradamente, foi citado em directo para as câmaras de televisão. Pois (e se atentamente tivesse lido algumas das coisas que aqui vou escrevendo saberia), olhando para o direito civil como um todo e para a protecção que esse ramo do direito dispensa ao nascituro, constatará facilmente que o mesmo é tratado ao nível do nosso ordenamento jurídico como uma pessoa, com igual dignidade à de um ser já nascido.

Evito-lhe, no entanto, a maçada de perscrutar nos arquivos o que procura. Fornecer-lhe-ei, de bom grado, a explicação.

O direito civil atribui personalidade jurídica a todas as pessoas singulares, desde o momento do nascimento completo e com vida. Porém, reconhece determinados direitos a quem ainda não nasceu, isto é, aos nascituros. E fá-lo quer no domínio patrimonial, quer no domínio pessoal.

No que ao primeiro diz respeito, há que, suplementarmente, estabelecer a distinção entre os nascituros já concebidos e os nascituros ainda não concebidos (ou concepturos). É que, enquanto os primeiros têm capacidade sucessória geral, os segundos só têm quando a transmissão de bens por morte ocorra por via testamentária. Percebe-se a diferença, positivamente consagrada, se pensarmos que, por este ainda não existir, não faria sentido que os efeitos jurídicos gerados pela morte do de cuius tivessem em conta aqueles que poderiam vir a existir. Donde resulta, a contrario, que a equiparação do concebido ao nascido na sucessão em geral só pode significar o reconhecimento da existência actual, e não meramente eventual e futura, de um ser distinto dos seus pais.

Sem que isso configure argumento decisivo na discussão do aborto, já que o artigo 66º, nº2, CC faz depender a plena eficácia dos direitos que a lei reconhece aos nascituros ao seu nascimento, em homenagem à regra da aquisição de personalidade jurídica naquele momento.

Acontece que a personalidade jurídica, sendo um expediente técnico, não se confunde com a personalidade humana, mais rica, mais densa, mais profunda. Para o provar basta pensar que também às pessoas colectivas ela é atribuída.

E esta percepção torna-se imprescindível para dilucidar a tutela de que o nascituro beneficia em matéria de direitos pessoais.
Sendo o direito geral de personalidade, bem como os direitos especiais de personalidade, uma decorrência da dignidade do ser humano, entende a doutrina que eles são protegidos na fase embrionária da vida. Recomendo-lhe a este propósito a consulta da tese de doutoramento de Capelo de Sousa, onde, fazendo apelo a uma pré-compreensão antropológica do ser humano, se opera uma análise dinâmica do objecto daquele direito que nos remete para os diversos ciclos evolutivos da existência.

Sintetizando algumas ideias chave, digo-lhe, usando para o efeito as palavras do Professor, que é “inegável a existência de uma vida humana no nascituro concebido, uma vez que ele, desde a concepção, emerge como um ser dotado de uma estrutura e uma dinâmica humanas autónomas, embora funcionalmente dependentes da mãe. Pelo que, não só ao nível de garantias constitucionais, mas também no âmbito das relações entre os particulares, por força da eficácia civil daquela norma (artigo 18º, nº1 CRP), dever-se-á considerar o ser do concebido como um bem juridicamente protegido (…)” [Teoria Geral do Direito Civil, p. 266].

Tudo isto a permitir-nos dizer que o artigo 70º CC acolhe a tutela do nascituro, desde que concebido. Não só tal é reconhecido pela doutrina em geral, como pela própria jurisprudência, existindo decisões dos Tribunais (mesmo estrangeiros. Cf., por exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal Alemão BGHZ, 8, 243 e Ac. RL 28-1-1977) em que se confere um direito a uma indemnização ao embrião, em virtude de lesões que o mesmo tenha sofrido durante a gravidez da mãe.

E não se invoque a este propósito o citado artigo 66º, nº2, pois, como magistralmente refere Capelo de Sousa, naquelas lições, “nem se diga que a esta tutela geral da personalidade do nascituro obsta o artigo 66º, nº2, argumentando que os direitos que a lei reconhece ao nascituro estão dependentes do seu nascimento e que tais direitos estão sujeitos a um numerus clausus (…)”, pois “o problema que nos prende aqui não é directamente o da titularidade subjectiva dos direitos ou faculdades jurídicas respeitantes à tutela dos interesses dos nascituros”, mas o da protecção do bem jurídico que é a personalidade física e moral do nascituro. [p. 270]. Pelo que, e continuando a citar, “é, desde logo, tutelável a vida do nascituro concebido, sendo ilícito e indemnizável o aniquilamento da vida”.

Mais lhe acrescento que o poder paternal se estende à fase embrionária da vida do filho. “Cremos que a expressão ainda que nascituros do actual nº1 do artigo 1878º CC, apesar da sua discutível localização, reporta-se (…) também aos deveres dos progenitores do concebido de velar pela segurança e saúde destes (…)” [p. 268, nota 664].

Pelo que lhe pergunto, meu caro CAA, será que a alteração legislativa não comportará, de facto, uma contradição no seio do ordenamento jurídico, tendo em conta que a mãe pode vir abortar sem estar ancorada em qualquer interesse legítimo, sem invocar qualquer razão, não se discernindo, por isso, uma colisão de direitos, e dado que o pai é totalmente arredado da situação? Não pelo que disse Bagão Félix, mas pelo correcto entendimento do sistema.

Diga lá de sua justiça.

Comentários:
A Mafalda disse.. NADA!
 
Caro anónimo,

entre o dizer e os outros perceberem vai um mundo imenso.
Lamento que não tenha capacidade para ler. Não está, de facto, ao alcance de todos.
 
Cara Mafalda,

Mais um excelente contributo jurídico para a defesa da vida! Finalmente alguém que explica às mentes iluminadas do sim que o positivismo, enquanto corrente jurídico-filisófica, morreu no século XIX...
 
Mais uma vez, como sempre, brilhante.
 





blogue do não