Tréplica ao sim

Se há algo que me encanta nesta conversa que tenho mantido com o Miguel é o sentido estético da ilustração com que sou presenteada. Correndo o risco de me tornar repetitiva, acho que vou abrir uma pasta no computador só para guardar as imagens da Mafaldinha. Obrigada, Miguel.

Mas, passando a assuntos sérios, vamos conversar mais um pouco, para que tudo isto não acabe em desconversa.

Antes, porém, um esclarecimento. Não fui eu que interpelei o Vasco M. Barreto. Foi ele que a mim se dirigiu. Para grande pena minha, constato que a resposta à minha pergunta tarda. Aliás, por diversas vezes tenho instado os meus opositores de momento com a mesma inquietação temporal. Há algum motivo para não me responderem? Será que o silêncio faz jus ao aforismo “quem cala consente”? É verdade que, coerentemente, não encontram nenhum óbice de princípio ao aborto até aos nove meses e apenas aceitam a limitação das 10 semanas para não assustarem o eleitorado e conseguirem, por via referendária, uma alteração legislativa?
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Repare que a minha pergunta, não sendo ingénua (admito-o), não comporta nenhum juízo de valor. Pois que, se comparam o embrião a uma ervilha, estão a partir de um pressuposto argumentativo que se situa nos antípodas da minha mundividência, pelo que o alargamento do raciocínio se afigura, em termos teóricos, plausível. Donde apenas pretendo obter o esclarecimento do eleitorado, em geral, e de mim mesma, em particular. Até porque, sendo certo que, se o sim vencer, jamais teremos a oportunidade de esgrimir argumentos a propósito de uma campanha, acho que temos o direito de saber quais as nossas expectativas. Seremos, posteriormente, confrontados com o alargamento do prazo?

Mas voltemos ao direito penal.
Caracteriza-se este pela sua fragmentaridade, é certo. De modo a viabilizar o discurso, e porque já percebi que o Miguel gosta pouco das propostas metodológicas que erradicam da concreta realização do direito as ideias de aplicação de normas e lacunas, até poderia aceitar que essa fragmentaridade se traduz na ideia de que só são crime as condutas previstas pelo legislador. Receio, porém, que tal não corresponda na exactidão à verdade. Diria, antes, que essa limitação da incriminação à previsão do legislador se traduz na tipicidade deste nicho dogmático. A fragmentaridade situar-se-á, na problematicidade que envolve o direito criminal, a montante.
Dito de outro modo, enquanto a ideia de tipicidade se dirige a um juiz, a ideia de fragmentaridade – devendo embora estar presente no horizonte discursivo de qualquer jurista – onera, sobretudo, o legislador. E em que medida? Na medida em que este, no momento em que decide o que deve ou não ser crime, há-de ter em conta que nem todos os bens jurídicos são penalmente tutelados (só são aqueles que possam ascender à dignidade de bens penalmente relevantes) e que não o são de modo global, podendo o legislador definir os contornos da actuação que, incidindo sobre aqueles, deve ser sancionada com uma pena (de prisão ou outra).
Em regra, e sem me debruçar agora sobre as diferentes escolas que – partindo de pressupostos filosóficos distintos – forneceram contributos importantes para a dogmática da construção da infracção criminal, e de modo a superar os riscos do positivismo legalista, entende-se que, em nome de um fundamento material que há-de estar presente em todo o ordenamento, há uma ligação entre os bens constitucionalmente tutelados e aqueles que são tutelados por via da incriminação.
Como entender esta relação?
Para alguns autores ela tem uma natureza unilateral. Ou seja, os bens penalmente relevantes só podem ser aqueles que têm assento constitucional, não sendo verdadeiro que todos os bens constitucionalmente consagrados devam gerar a correspondente previsão de um crime.
Para outros autores, a primeira dimensão da relação procurada é completada por uma segunda, nos termos da qual existirão, em nome de um dado entendimento do princípio da proporcionalidade (visto não apenas como proibição do excesso, mas também como proibição da tutela insuficiente), imperativos de criminalização.
A sufragar-se a segunda posição, redundaria a não criminalização do aborto numa inconstitucionalidade por omissão.
Mas admitamos – não por uma concreta tomada de posição sobre a matéria, tão só por uma questão de facilidade argumentativa, à boa maneira de Habermas – como correcto o primeiro pensamento expendido.
Ainda assim, nada disso põe em causa o que lhe venho dizendo. Até porque eu nunca falei de inconstitucionalidade a este propósito.

Continuemos, então. E continuemos, dicotomizando o discurso a dois níveis.

Num primeiro nível, em que consideramos que, e aceitando (acho que este é ponto assente) que o embrião é vida humana e como tal merece tutela, se não for a criminalização nenhum outro meio se afigura adequado a cumprir esse desiderato. É certo que ao nível do direito civil se reconhecem direitos de personalidade ao embrião, considerando a melhor doutrina (cf. neste ponto Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade) que o artigo 66º, nº2 do Código Civil se deve restringir à problemática dos direitos patrimoniais. Mas ninguém honestamente pode dizer que por via da responsabilidade civil se protege o nascituro contra um acto perpetrado, contra a sua vida, pela sua própria mãe. Pois se ela, sendo herdeira, passa a ser titular do direito à indemnização pelo dano da morte, redundaria a solução no pagamento de uma indemnização pela mãe a si própria. Nem, em bom rigor, colhe a invocação da adopção de políticas sociais de fomento da natalidade. Por dois motivos. Primeiro porque, ainda que elas existam, nem por isso ficamos garantidos contra eventuais actos lesivos da vida do embrião. Segundo porque, e seriamente, o que se assiste neste momento é à canalização de recursos financeiros para o suporte de abortos – quer no SNS, quer em clínicas privadas – em detrimento do incremento de reais medidas de combate às causas do aborto.

Com isto justifico plenamente a legitimidade da intervenção do direito penal ao nível do crime de aborto. Sem que o Miguel me consiga encontrar uma alternativa para protecção do embrião (mesmo porque dados estatísticos comparatísticos nos mostram que, a seguir à liberalização do aborto, o número destes aumentou exponencialmente). E sem que se perceba, consequentemente, a quase obstinada colagem do meu discurso à Igreja Católica (já agora, menos ainda se percebe o Antigo Testamento). Não estará o Miguel com alguma obsessão na matéria? Repare que a invocação teológica é sempre (volto a sublinhar, sempre) feita por si e não por mim. Mais do que isso… não estará o Miguel com lacunas na leitura dos autores clássicos que, recusando o teocentrismo da fundamentação jurídica, nem por isso eram menos seguros na afirmação da defesa da vida humana nas suas diversas fases evolutivas?

Num segundo plano para explicar ao Miguel outro dado que, tendo já sido referido por mim, ficou, por certo, obscuro.
Afastemo-nos agora do direito penal. O ordenamento jurídico não é composto só por normas. Estas têm um fundamento material. Têm a suportá-las diversos princípios normativos que, comunicando-lhes uma intencionalidade própria, permitem que aquelas não sejam uma mera forma à livre disposição da vontade – sempre tendencialmente arbitrária - do legislador. Ora, o princípio fundamental que enforma e informa todo o sistema é o princípio do reconhecimento da ineliminável dignidade do ser humano como pessoa. Quer isto dizer que qualquer norma que atente directamente contra esse princípio, ao qual ela terá sempre de ser referida (bem como às suas concretizações nos diversos e menores princípios normativos), sob pena de incompreendermos o sentido normativo dessa norma, é uma norma injusta (falo de norma injusta, por ter em conta que a juridicidade é mais ampla e mais funda que a própria constitucionalidade), devendo ser “desaplicada”.
Por outro lado, é bom não esquecer uma ideia de coerência sistemática, embora, e numa óptica superadora do positivismo, ela não se distinga claramente do enfoque teleo(nomo)lógico de que falava.
Se o ordenamento jurídico consagra um direito à aquisição de pílulas do dia seguinte (e esqueça o direito penal, pelo que, por maioria de razão, esqueça das tentativas e as tentativas impossíveis), é porque, em concreto, considera que esse comportamento não é atentatório de nenhuma vida humana. Até porque, e isso é inegável, o direito civil reconhece uma ampla tutela aos nascituros.
Poder-me-á dizer que não há razões científicas que justifiquem essa solução.
Dir-lhe-ei que há porque, de acordo com o modo de funcionamento das ditas pílulas, quando o efeito químico se produz pode nem sequer ter havido fecundação. O ordenamento jurídico, pela mão do seu legislador, permite a assunção desse risco.
Se quiser, e novamente com um discurso juridicamente cunhado, estamos no domínio de um risco permitido ou, e não querendo fazer resvalar o pensamento para uma alienação da realidade tão própria dos funcionalismos sistémicos, de uma normativização do bem jurídico.
Que não colhe por referência às 10 semanas, dado que aí, e na sua globalidade, o ordenamento já se manifestou reconhecendo a pessoalidade do embrião.

Mais lhe digo que esse regime de favor conferido a essa esfera de risco – em nome da incerteza da existência ou não de uma fecundação e na consciência da ausência de nidação – é um importantíssimo argumento do não. Por dois motivos.
Primeiro porque se o que aí justifica a admissibilidade das pílulas do dia seguinte é a incerteza e o risco, no caso do aborto até às 10 semanas o que existe é a certeza: a certeza da existência de uma vida que é humana.
Segundo porque faz falecer a invocação do direito à autodeterminação da maternidade. A mulher é livre de se autodeterminar sexualmente e para a maternidade. Ninguém a obriga a ser mãe. Nem ninguém a obriga a votos de castidade. Apenas se diz que, sendo o seu agir livre, ela há-de assumir o resultado da sua conduta. Actua segundo uma lógica – sempre presente em qualquer actuação humana – de risco/benefício. Para minimizar os riscos, lança mão de meios contraceptivos. Se eles falharem, ainda se permite, no limite, e segundo essa óptica da incerteza e do risco permitido, que ela use contracepção de emergência. Pelo que, no momento em que constata estar grávida, já não existe qualquer liberdade. Que foi jogada previamente.

Comentários:
Perguntem aos Portugueses:



"CONCORDA QUE O ROUBO DEIXE DE CONSTITUIR CRIME NAS PRIMEIRAS 10 SEMANAS DO ANO, A PEDIDO DO LADRÃO E REALIZADO EM BANCOS, HIPER´S, SHOPPING´S, CASINOS E BOLSAS?"



Por que não o pedem os "progressistas"? Roubar não é tão grave como MATAR quem está a crescer na barriga da mãe. As razões para despenalizar o roubo seriam as mesmas que os "progressistas" invocam para a despenalização do aborto: 1) a hipocrisia dos que penalizam o gatuno; 2) o escândalo do roubo clandestino; 3) a impotência da lei face à realidade social. É sabido que já ninguém consegue combater eficazmente a fraude e evasão fiscal, os cheques sem cobertura, os assaltos, as burlas, os desvios, as dívidas, a engenharia financeira e o défice, mas sobretudo o sofrimento desumano de tanta gente sem trabalho nem pão ou com reforma miserável, enquanto uma minoria vive no luxo e na ostentação. HIPÓCRITAS são, por isso, os que reclamam a despenalização do ABORTO e se envergonham de pedir o mesmo para o roubo.

Rui AC
 
Em França já estão 30 anos mais avançados...

http://www.30anscasuffit.com/
 
A que chamas avanço? A despenalização, ou mesmo a liberalização, não passa de uma mudança. E como tal existem mudanças progressivas e regressivas... quem considera isto progressivo além de irracional é um atentado à espécie humana.
Como humanistas, que todos deveriamos ser, cabe-nos defender os que nos são iguais, seres humanos, e respeita-los.
Se se defende o não ao racismo, à xenofobia, e a tanta outra forma de discriminação, como podem ignorar uma vida que é igual à vossa? Aí já podem ignorar, discriminar?
 
veja este video do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa:
clicar em: http://www.assimnao.org/
 
Mafalda

Eu não me calei, mas fui censurado.

Lamento que a Mafalda, personagem tão magnânima perante a vida, tenha abortado um simples comentário, pelo simples facto de que punha em causa o seu raciocínio simplista.
 
Caro h5n1,

lamento que tenha errado no seu juízo.
Desde que publiquei este texto que obrigações laborais me impediram de aceder ao computador, pelo que, se o seu comentário se perdeu, não foi por culpa minha.
 
Mafalda, algumas questões:

1. O feto até às 20 semanas não possui córtex cerebral nem SNC activo (apenas se registam reflexos condicionados generativos).

Esta situação é semelhante ao de um ser humano que esteja em "morte cerebral" e que seja mantido vivo através da ligação à máquina. Se neste segundo caso, for decidido desligar a máquina, não há lugar a "crime" nem sequer a desrespeito pelo ser humano, porque considera-se que só subsiste um corpo sem existência da personalidade.

Pergunta: porquê então não relativizar a situação do feto até às 10/20 semanas, equiparando-a à do ser vivo ligado à máquina com "morte cerebral" ?

2. Pode considerar-se, ou não, o aborto como uma forma de benefício para a sociedade e para a mulher, em particular, se atendermos ao controlo da natalidade e ao menor risco que uma mulher corre, COMPARATIVAMENTE a quando tem uma criança de termo ? Nesta alínea, colocaria ainda o comportamento médico quando se trata de um prematuro e, os médicos não alertam os pais para os riscos elevados de uma eventual deficiência. Deveriam os pais ser informados e poder optar, ou não?

3. O feto individual, tem um eventual futuro, que pode ser questionado em termos éticos, na medida em que se lhe retira essa hipótese. Mas convenhamos que isto, face ao não-futuro de milhões de seres humanos REAIS que morrem (fome, guerra, HIV,) lá longe..., constitui apenas uma pequena partícula de pó, no que respeita à dimensão ética da nossa responsabilidade pela vida humana. Ou não ?

4. Somos insignificantes mas achamos que podemos ser Deus no papel de decidir da vida e da morte dos Outros... Ou não ?
 
h5n1,

Esta situação é semelhante ao de um ser humano que esteja em "morte cerebral" e que seja mantido vivo através da ligação à máquina. Se neste segundo caso, for decidido desligar a máquina, não há lugar a "crime" nem sequer a desrespeito pelo ser humano, porque considera-se que só subsiste um corpo sem existência da personalidade.
Permita-me discordar. Essas não são situações semelhantes. Um feto ainda não é. Um ser humano que esteja em "morte cerebral" não é.

O feto individual, tem um eventual futuro, que pode ser questionado em termos éticos, na medida em que se lhe retira essa hipótese. Mas convenhamos que isto, face ao não-futuro de milhões de seres humanos REAIS que morrem (fome, guerra, HIV,) lá longe..., constitui apenas uma pequena partícula de pó, no que respeita à dimensão ética da nossa responsabilidade pela vida humana. Ou não?
Não. Os milhões de seres humanos reais (um feto não é real, não existe?) que morrem lá longe morrem apesar do que fazemos. Num aborto, o feto morre morre por causa do que se faz. Como analogia, não poder/querer impedir umas crianças de serem torturadas e mortas não justifica que, apenas porque sim, possa espancar as outras.
 
Joaquim Amado Lopes

comete um erro que é significtivo da complexidade e dificuldade do assunto:

primeiro afirma que um feto (10 semanas) AINDA não é um ser humano, para logo a seguir insinuar que o feto é um ser humano REAL!

É precisamente por esta linha de demarcação ser tão RACIONAL e ABSTRACTA, que se tenta compensar com IMAGENS (literais ou metafóricas) que nada dizem mas nos impedem de pensar e analisar a realidade com vista a chegar à VERDADE.

Como ser humano racional, acredito que haja quem chegue a Deus através de imagens, mas não duvido que é através do raciocínio abstracto que eventualmente se chegará mais perto da Verdade.
 
Eis mais algumas frases fantásticas dos defensotres do "Sim":
1. “Já imaginaram a miséria que é ter um filho porque não se teve dinheiro para pagar um aborto?”Fernanda Câncio

2. “deixou de ser pertinente e sério insistir no tema da vida do embrião ou do feto e da sua eventual prevalência sobre a vida da grávida”Manuel Alegre

É por estas e outras que cada vez mais estou convencido que os "jacobinos" e pseudo-intelectuais da "esquerda caviar" nos querem enganar...

Votar NÃO no referendo é um imperativo ético, moral, social, politico, económico e sobretudo HUMANO.
 
h5n1,
primeiro afirma que um feto (10 semanas) AINDA não é um ser humano
Peço-lhe que, quando ler o que escrevo, não adicione palavras suas para alterar o sentido das minhas. "o feto ainda não é" não é a mesma coisa que "o feto ainda não é um ser humano".

Se leu alguma coisa do que aqui tenho escrito, sabe perfeitamente que defendo que o feto é indiscutivelmente um ser humano. Mais, se sou contra o aborto a pedido porque acredito no direito do feto a viver, como é que poderia dizer que não é humano?
Mesmo que não tenha lido nada do que escrevi, deve (devia?) ter reparado que "Um ser humano que esteja em morte cerebral já não é um ser humano" não faz nenhum sentido. Se é um ser humano, esteja ou não em morte cerebral, é um ser humano. Assim, o "ainda não é" e o "já não é" não se podem referir a ser ou não um ser humano.

O "ainda não é" e o "já não é" referem-se a interagir, comunicar, fazer, ser. O feto tem um mundo de possibilidades para concretizar enquanto que o "ser humano em morte cerebral" já não. Fiz-me entender?

Peço desculpa se não fui mais explícito no primeiro comentário mas nunca imaginei que alguém fizesse a confusão(?) que o h5n1 fez e colocasse na minha boca tamanho disparate como o de que o feto não é um ser humano.

para logo a seguir insinuar que o feto é um ser humano REAL!
Se foi gerado por seres humanos é humano. Existe e está vivo. Como é que poderia não ser real?
 
Caro h5n1:
Ao comentário do JAL só queria contrapôr o seguinte: o córtex cerebral começa a formar-se às 9 semanas. Logo, não é verdade que "o feto até às 20 semanas não possui córtex cerebral".
Cumprimentos
 





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