A abrangência do Não

Recebemos no BdN o contributo de uma jurista, Assistente na Faculdade de Direito de Coimbra, que, assumindo-se como feminista, apresenta as razões para votar NÃO.

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Nasci mulher. O que, mais do que uma condição biológica é, acima de tudo, uma condição social e jurídica. E nunca consegui ser condescendente com aqueles que invocam os meus dois genes “x” como argumento para me impedir de desempenhar papéis que aos homens são admitidos.

Por isso não surpreende que os meus primeiros passos no mundo académico tenham sido dados no campo dos direitos das mulheres. Não foi fácil. Ser apelidada de “feminista” ainda hoje transporta consigo máculas mais ou menos óbvias. E apresentar uma tese de mestrado sobre direitos das mulheres também não é o caminho mais sensato quando se pretende singrar na vida académica.

Mas o princípio básico de que sou tão válida quanto qualquer homem – tão arguta nas discussões politicas, tão carniceira numa hipotética guerra e tão capaz para qualquer desafio da sociedade actual – constituía razão suficientemente importante para me fazer levar à minha avante. Foi assim que a Eva (O Poder de Eva: O Princípio da Igualdade no Âmbito dos Direitos Políticos; Problemas Suscitados pela Discriminação Positiva, Editora Almedina, Coimbra, 2004) me revelou publicamente como aberta defensora da igualdade entre géneros.
Mesmo quando os meus passos se encaminharam para outros campos de investigação, uma vez mais foi por mão dos direitos das mulheres que tal sucedeu. O primeiro estudo que efectuei na área do direito biomédico abordava uma questão mais próxima às mulheres do que aos homens: a maternidade de substituição (De Mãe para Mãe: Questões Éticas e Legais Suscitadas pela Maternidade de Substituição, Publicação do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.º 5, Coimbra Editora, Coimbra, 2005). Este foi o ponto de partida para posteriores investigações sobre técnicas reprodutivas, dação de gâmetas, embriões in vitro e outros temas atinentes aos direitos reprodutivos.

Assim cheguei aos embriões e à interrupção voluntária da gravidez. Não que alguma vez tenha escrito exactamente sobre isso. Procurei sempre passar ao lado desta vexata quaestio porque tenho para mim que todos os argumentos já foram aduzidos e apenas se trata agora de tomar uma posição. Mas a verdade é que parece que chegou o momento de assumir publicamente essa posição e assim vejo-me na contingência de – e parece que para surpresa de muitos – manifestar a minha resposta ao referendo que se aproxima: Não.

Quero deixar bem claro que esta asserção não repousa em qualquer tipo de convicção religiosa. Existem obviamente considerações éticas – e porque não dizer morais e religiosas? – a fundamentar qualquer posição que se tome quanto ao aborto. Confesso até que durante muito tempo defendi que, sendo exactamente uma questão moral, deveria ser deixada à consciência de cada um. Conquanto a minha consciência me impedisse, em via de princípio, de pôr fim a uma gravidez desse modo (e estou consciente de que afirmo isto porque efectivamente nunca me encontrei perante tal dilema e, mesmo que tal sucedesse, a vida colocou-me numa posição bem mais confortável do que a maioria das minha congéneres), acreditava que não dispunha de legitimidade para impor esta opção às outras mulheres. Contudo, cheguei à conclusão que os meus argumentos são mais do que meras concepções morais, porque os entendo como raciocínios lógicos e racionais, fundados em ideias de justiça que escapam ao mero arbítrio pessoal. Por conseguinte, são suficientemente ponderosos para proibir esta prática a qualquer pessoa, do mesmo modo que lhe é proibido cometer qualquer outro crime.

Queria poupar-vos ao fraseado jurídico, mas não consigo evitar tecer algumas considerações, até porque, em ultima instância, são argumentos jurídicos que sustentam a minha posição.

Antes de mais, cabe esclarecer que não concebo o embrião como uma pessoa humana, titular de direitos fundamentais. Que sou incapaz de atribuir direitos ao embrião, e que considero que a morte de um embrião, ou mesmo de um feto, nunca poderá ter o mesmo desvalor que a morte de um ser humano já nascido. Que sou completamente apologista da investigação operada em embriões excedentários e da extracção de células estaminais. Que sou partidária da chamada “pílula do dia seguinte” e da sua venda livre.

Mas, não obstante o que ficou dito, penso que a interrupção da gravidez, bem como qualquer outra prática que tenha lugar sobre o embrião após a nidação, deve ser interdita. O processo de nidação completa-se cerda de 12/13 dias após a fecundação e consiste no alojamento do embrião nas paredes do útero. Nesse momento o embrião adquire consistência vivencial, pois passa a reunir em si duas características imprescindíveis para o reconhecermos como uma entidade autónoma: a unidade (ser insusceptível de divisão) e a unicidade (ser único e irrepetível). É também por volta desta altura que surge a linha primitiva e se desenha o sistema nervoso central, do futuro cérebro e da espinal-medula. Por outro lado, antes da nidação a sua existência é tremendamente precária. O destino de muitos dos produtos da fecundação (seguramente mais de metade) será um abortamento natural, acabando por ser expelidos pelo corpo materno com o fluxo menstrual, sem que a própria mulher se aperceba da sua gravidez. Em contrapartida, após a nidação a expectativa daquele ser humano potencial vir a tornar-se actual torna-se uma expectativa credível.

Não que a vida humana se inicie com a nidação. Tenho para mim que existe vida humana a partir do momento da fecundação. Simplesmente, uma vida humana em devir, em progressão, cuja protecção se tornará progressivamente mais forte à medida que nos aproximamos do nascimento e da formação da pessoa humana. Pois afirmar a existência da vida humana, e consequentemente de um ser humano, enquanto realidade eminentemente biológica, é distinto de afirmar a existência de uma pessoa humana, a qual representa antes uma realidade social, jurídica e moral.

Creio que a tutela concedida a essa vida humana em formação começa com a fertilização, concedendo-lhe aí um mínimo de protecção, inerente a todas as formas de vida humana, protecção essa que se vai adensado à medida que o embrião caminha em direcção à pessoalidade. Nos referidos 12/13 primeiros dias de vida a sua existência poderá ter de ceder face a outros interesses que se considerem superiormente relevantes, mormente o interesse da mãe (no caso dos embriões in uteru) ou o interesse da ciência no bem-estar da humanidade (se atendermos aos embriões in vitro, se bem que a investigação embrionária apenas poderá ter por objecto embriões supra-numerários, cujo único destino possível seria a destruição, ou seja, após esgotar qualquer possibilidade de gestação e nascimento).

Encontro no actual sistema jurídico português a base sustentável para esta concepção. Desde logo, no plano do direito civil, o art. 66.º/1 CC faz depender a aquisição da personalidade jurídica do nascimento completo e com vida, sem contudo se olvidar que outras normas atribuem ao nascituro uma posição jurídica em sede de sucessões e doações (arts. 952.º e 2033.º CC), conquanto depende do efectivo nascimento (art. 66.º/1 CC). Logo, o embrião não é uma pessoa jurídica, mas goza de certo estatuto jurídico, porventura aquilo que vários autores designam de personalidade jurídica parcial e incompleta.

Depois, também no campo do direito criminal é visível a distinção entre o embrião enquanto pessoa humana apenas potencial (por outras palavras, não-pessoa) e a pessoa humana actual. Essa distinção plasma-se na diferenciação dos tipos de crimes correspondentes à destruição de cada uma destas modalidades de vida humana, aos quais foram atribuídas distintas molduras penais, substancialmente mais gravosa no homicídio do que no aborto. Todavia, a circunstância de o Código Penal considerar a destruição do embrião uma conduta violadora de bens jurídicos de especial valor mostra-nos que a sua vida não é desprovida de significado. Este último ponto constituiu o principal foco de discussão do referendo.

Também o direito constitucional se preocupa em diferenciar a vida humana nascida da não nascida. Não é despicienda a afirmação do nosso Tribunal Constitucional segundo a qual a Constituição da República Portuguesa confere ao embrião uma protecção objectiva, mas não subjectiva (Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 85/85, de 29 de Maio). Significa isto que o embrião não é titular de direitos fundamentais (mormente, não se poderá falar de um direito à vida do embrião), mas a sua vida – como vida humana que é – represente um valor digno de tutela constitucional.

Claro que a vida do embrião não é um absoluto. Nem sequer a vida da pessoa o é. Pode ceder em várias situação de conflito, e efectivamente o nosso direito criminal prevê vários circunstancialismos em que tal é possível suceder. Defendo que a vida e a saúde da mãe (note-se que aqui mesmo a saúde psíquica, o que sem dúvida abre a porta a possibilidades aparentemente insuspeitas para os defensores da liberalização) prevalecem sobre a vida do embrião (art. 142.º/1/a/b CP). Defendo igualmente que seria insustentável forçar uma mulher a levar a bom termo uma gravidez resultante de uma acto criminoso, pois neste caso o sacrifício se lhe se imporia seria demasiado pesado face ao valor que se pretende proteger (art. 142.º/1/d CP). Assim como também defendo que não tem sentido prolongar uma gravidez que certamente terminará em abortamento espontâneo dadas as anomalias do embrião, ou aquelas que embora culminando no nascimento darão origem a um nado-morto, uma criança com um horizonte de vida temporalmente limitado (dias, meses) ou uma pessoa portadores de gravíssimas deficiências (art. 142.º/1/c CP). Em qualquer destas hipótese se erguem valores de maior peso, face aos quais o valor vida “humana intra-uterina” deve ceder, sobretudo porque nos reportamos a estádios iniciais dessa vida.

Mas, alem destas hipóteses enumeradas na lei, e para além dos prazos legalmente estipulados (sendo que aqui admitiria um ligeiro alargamento da extensão desses prazos) o aniquilamento da uma vida humana, ainda que seja de a vida de uma ainda não-pessoa, deverá ser considerada criminosa. E nem sequer a vã invocação dos direitos das mulheres poderá justificar semelhante conduta, sob pena de, em congruência com tal arrazoado, termos também de ilibar as mulheres de outros crimes, como o homicídio ou a ofensa corporal, invocando para as eximir de responsabilidade unicamente o seu género, que reconhecidamente as coloca em situação de desvantagem social.

Sendo firme defensora dos direitos reprodutivos, custa-me a inserir aqui o direito a abortar, embora esteja ciente de que é esta a prática corrente na doutrina norte-americana, onde tais direitos nasceram. Penso que no que toca ao direito à não-reprodução, o que a lei deve consagrar é o direito de acesso livre a métodos anticoncepcionais, destinados a evitar a fecundação ou mesmo a nidação, mas não o direito a abortar. É que aquele amontoado de células é mais do que “amontoado de células”. É mais do que anexo do corpo da mulher. É um ser humano autónomo, e como ser humano que é não pertence a ninguém, nem sequer à mãe, conquanto dependa dela para sobreviver.

O referendo questiona-nos a propósito da despenalização do aborto nas primeiras dez semanas de gravidez, desde que realizado em centro médico credenciado. Ora, a própria pergunta enferma de vícios, pois despenalizar implica diminuir a pena de uma conduta que permanece criminosa aos olhos da lei, quando o que aqui se pretende é liberalizar por completo o aborto nas primeiras dez semanas. Logo, o que se trata é de uma descriminalização, a expressar que o período inicial da vida humana se degradou a bem de valor não fundamental, pois que lhe foi retirada a chancela jurídico-criminal, apanágio dos mais valiosos bens da nossa existência. O que me deixa incrédula, se pensarmos que um dos dogmas da nossa civilização é precisamente o estatuto da vida humana (qualquer uma, sempre o supus ate ao momento) enquanto o mais fundamental dos bens jurídicos. As especificidades da vida humana intra-uterina não são suficientes para a desclassificar a vida legada por um deus menor.

À parte as aporias terminológicas, resta-nos a questão: deverão ir para a prisão as mulheres que interromperam a sua gravidez fora das circunstâncias enumeradas na lei? Enfim, não acredito que no caso a prisão seja a mais adequada das penas. Insurjo-me desde logo que sejam apenas as mulheres e o pessoal médico envolvido a ser penalizado por esta conduta. Se queremos ser congruentes com a nossa opção, teremos antes de mais que responsabilizar criminalmente o pai daquela criança, que deixou uma mulher e um embrião sozinhos à sua sorte. Contudo, uma vez assente que todos devem ser chamados à responsabilidade, estou alerta para a enorme dificuldade com que em muitos casos nos defrontaríamos para detectar este “culpado”. Mas recordo a extrema complexidade que envolve a descoberta de agentes de outros crimes (desde logo, determinar se o participante num acto sexual se envolveu em sexo consensual ou praticou antes uma violação), sem que isso nos force a tornar tais condutas lícitas.

Permitir que nas primeiras dez semanas a mulher ponha e disponha sobre a vida do embrião representa um retrocesso ético-juridico. Seria a primeira vez – desde os tempos de abolição da escravidão – que se daria a um ser humano o poder de ditar a vida e a morte de outro. E ainda falam em avanço civilizacional…

O respeito devido à mulher não exige, e diria mesmo que não se compadece, com a atribuição do poder de destruir vidas. Mais do que isso, trata-se de uma medida paternalista que, condescendentemente, atribui às mulheres soluções de última instância para actos que – por mais errados que sejam e por mais pesadas que advenham as consequências – devemos avocar, como seres racionais, livres e responsáveis que somos.

Combato pelas mulheres, desde logo porque sou mulher. Mas combato essencialmente pela vida humana, porque acima de tudo sou um ser humano. Dizer NÂO no referendo significa combater por ambos.
Vera Raposo

Comentários:
Mas eu sou machista e voto Sim!...
 
O sexismo e´sempre errado.

Devemos ser pela igualdade de oportunidades e votar não, obrigado

ou, pelo menos, assim não
 
estamos num país onde a impunidade impera...
Tudo e todos, sem olhar a meios estão ao serviço da ideologia do poder...ai se fosse um gverno de direita o que não diriam os radicais de esquerda, os comunas, os frustrados do sistema marxista, os gays, as feministas radicais, os "padres" sem exercerem o ministério etcestamos num país onde a impunidade impera...
Tudo e todos, sem olhar a meios estão ao serviço da ideologia do poder...ai se fosse um gverno de direita o que não diriam os radicais de esquerda, os comunas, os frustrados do sistema marxista, os gays, as feministas radicais, os "padres" sem exercerem o ministério etc..vejamos mias umexemplo:
http://expresso.clix.pt/Dossies/Interior.aspx?content_id=377093&name=Referendo%20sobre%20o%20Aborto
..vejamos mias umexemplo:
http://expresso.clix.pt/Dossies/Interior.aspx?content_id=377093&name=Referendo%20sobre%20o%20Aborto
 
Dra Vera Raposo,

Li com atenção a sua argumentação.


Permita-me que lhe diga que a chave da sua decisão talvez esteja neste ponto quando diz:
"(...)O que me deixa incrédula, se pensarmos que um dos dogmas da nossa civilização é precisamente o estatuto da vida humana...".

É precisamente por assentarmos em "dogmas" que impedimos o avanço civilizacional.

Depois de ter recebido de herança esse cultural dogma de vida, parti para outras paragens onde o Amor rivaliza com a Vida e a Morte. Sim, também pela lógica cristã imbuída na nossa sociedade me parece ser esse o Valor Principal. (Até Deus nos mandou o seu Único Filho e o mandou à morte... porquê? Por AMOR!E talvez também porque esta vida que tanto defendemos, a que começa na concepção até à morte seja apenas uma forma de vida, uma vez que talvez sejamos eternos. Também é Ele que, nessa visão religiosa, apesar de nos amar imenso, nos tira a vida a todos, se a vida terrena fosse assim tão intocável, teria isto alguma lógica?)

E por isso, penso se uma mãe quer o melhor para o seu filho, é por amor que interrompe uma gravidez quando acha que não tem condições físicas, psíquicas, afectivas para o ter. Sim, porque tal como disse, aquele ser ainda só é "pessoa humana apenas potencial".

Para mim, basta uma mulher não desejar a criança por essas razões, para não estar criada a condição mínima para que esse ser potencial passe a ser actual. E confio no discernimento das mulheres! Mesmo que seja fruto de ignorância ou de indigência elas acham que estão a fazer o melhor, não só para si mas também pelo seu filho potencial. E acho sinceramente, ao contrário de si, que o embrião tem muito mais protecção no amor e discernimento das mulheres do que em qualquer letra escrita num código penal.


É aqui que me afasto de si quando diz: "O respeito devido à mulher não exige, e diria mesmo que não se compadece, com a atribuição do poder de destruir vidas."

O respeito devido à mulher exige que seja considerado um ser completo com capacidade de decisão, pioneira em considerar o Amor um bem maior do que a vida, um ser capaz de ponderar valores dentro de que a levem a agir livremente sem ter que se subjugar a valores de outrém que podem ser igualmente válidos mas seguramente não mais válidos.

E o avanço civilizacional não se mede pelo aumento da população mundial fazendo nascer todo e qualquer feto, penso eu! Mede-se por sermos capazes de conviver em harmonia com valores diferentes,em busca da verdade, juntos, sem impormos valores uns aos outros, muito menos no código penal e muito menos causando sofrimento e aplicando penas àqueles (que neste caso ainda por cima só são elas) que têm têm valores diferentes dos nossos.

Concluindo, são sempre os dogmas que nos impedem de avançar, deixemo-los, ainda que procuremos outros melhores e melhores, não lhe parece?

Respeitosamente

CM
 
Sim, porque tal como disse, aquele ser ainda só é "pessoa humana apenas potencial".

Para mim, basta uma mulher não desejar a criança por essas razões, para não estar criada a condição mínima para que esse ser potencial passe a ser actual. E confio no discernimento das mulheres! Mesmo que seja fruto de ignorância ou de indigência elas acham que estão a fazer o melhor, não só para si mas também pelo seu filho potencial. E acho sinceramente, ao contrário de si, que o embrião tem muito mais protecção no amor e discernimento das mulheres do que em qualquer letra escrita num código penal.


Este sim é um verdadeiro dogma!

Então o feto é uma virtualidade e o amor da mãe (que mata) uma realidade bondosa??

Como andam tortas estas cabeças!
 





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