Como a resposta devia ter mudado a pergunta

Este é o "Não" da Filipa Correia Pinto, uma grande amiga, colega e correlegionária, com saudáveis e metódicos hábitos de dúvida nesta matéria. É bom aproximarmo-nos do fim da campanha com este espírito de recuo, serenidade e seriedade.


«Sou liberal, sou jurista e sou de direita. Não acredito numa sociedade que confere ao Estado o poder de julgar os comportamentos privados de cada um, que se serve da força coerciva de uma ordem jurídica para impor morais particulares ou que interfere no exercício da liberdade de indivíduos capazes. A minha visão do mundo e da vida comunitária e as minhas opções políticas ou cívicas, apesar de raramente se conseguirem desligar da racionalidade e da lógica do Direito, sempre radicaram na liberdade individual, simplesmente entendida como esfera de direitos que só pode ser limitada em nome da liberdade dos outros. De resto, é essa – mas apenas essa – a tarefa dos ordenamentos jurídicos cuja eficácia e garantias permitem o funcionamento dos Estados: a de assegurar a liberdade, a propriedade e o pleno desenvolvimento físico, intelectual e espiritual de cada cidadão em condições de igualdade.

É pois nas exactas balizas desta “declaração de interesses” que deve ser lido o meu NÃO à pergunta do referendo do próximo domingo. Longe de ser um não fanático, fundamentalista ou religioso, o meu não é antes a única resposta lógica e racional que consigo dar. Não sei quando começa a vida e não aceito que uma mulher que aborta em condições dramáticas seja tratada como criminosa. Não aceito que o termo voluntário de uma gravidez indesejada seja tratado com a mesma censura do que o homicídio ou o estupro. Custa-me que uma mulher que decide abortar o tenha de fazer sem apoio médico qualificado e em condições de higiene que põem em perigo a sua vida e sua integridade.

Mas – desenganem-se os oportunistas – também estas são boas razões para votar Não, pelo menos neste domingo.
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O ordenamento jurídico português – tributário de uma certa concepção de homem enquanto ser dotado de uma inalienável dignidade, único e irrepetível – e, em especial, a lei penal, conferem – e bem – protecção à vida intra-uterina. Aliás, ainda não ouvi ninguém com um mínimo de razoabilidade contestar a necessidade de tal protecção: é por isso que é consensual a penalização da interrupção voluntária da gravidez aos sete meses de gestação ou a relevância penal de um homicídio tentado na pessoa da mãe da qual resulta a morte do nascituro. É pois evidente que, até da perspectiva do nosso código penal, na barriga da mãe há algo mais do que uma parte do seu corpo: há um bem jurídico, cujo atentado se enquadra em geral nos crimes contra as pessoas, e em especial contra a vida intra-uterina.

A questão do aborto e da sua admissibilidade legal tem, portanto, de ser colocada à luz de um confronto entre bens jurídicos distintos (que, de resto, merecem ambos tutela penal): por um lado, a vida intra-uterina, por outro, a liberdade da mãe. Ora, independentemente dos problemas que levanta a actual lei, a sua aplicação jurisprudencial ou a realidade em que abortam muitas mulheres, não é aceitável que à mãe seja conferido o direito absoluto de fazer prevalecer a sua liberdade sobre a vida do feto.

É verdade – e é indesmentível – que há determinadas circunstâncias (que o Direito deve reconhecer) em que essa liberdade deve prevalecer. Apesar do que por aí se tem dito, esta constatação simples não comporta nenhuma hipocrisia ou contradição: ainda nessas circunstâncias se encontram dois bens jurídicos em confronto, mas nem sempre a sua justa ponderação conduz a que a vida do feto prevaleça sobre a liberdade da mãe. É assim no caso de violação, é assim no caso de risco grave de saúde da mãe e é ainda assim até no caso de malformação congénita. Aliás, a forma como a partir daqui os partidários do Sim têm tentando embaraçar os defensores do Não revela uma profunda ignorância jurídica – são inúmeros os casos em que o legislador optou por proteger determinado bem ou valor em detrimentos de outros, também eles dignos de tutela (veja-se o exemplo paradigmático da legítima defesa enquanto causa de exclusão de ilicitude ou outros, mais complexos, como o da proibição de associação sindical para certas profissões ou o dos limites do direito à greve).

A questão que se põe (até porque, verdadeiramente, é ela que separa o sim do não), é a de saber quais são as condições em que a liberdade da mulher pode prevalecer sobre a vida do feto e, fora delas, que consequências jurídicas deve ter a prática de um aborto. A actual lei procedeu a esta ponderação de forma razoável, embora porventura não exaustiva na letra do art. 142º do Código Penal: esquece o Sim, esquece muitas vezes o Ministério Público e esquecem talvez os tribunais que existem na lei variadas circunstancias de exclusão da culpa e da ilicitude que impedem que uma mulher que aborta em condições dramáticas seja condenada – o estado de necessidade, a coacção, o conflito de deveres. Por outro lado, a concreta aplicação de uma pena de prisão depende sempre da existência de possibilidade de se imputar ao agente um especial juízo de censura e da necessidade de acautelar exigências de prevenção que não possam ser satisfeitas por aplicação de outras penas não privativas da liberdade. Acresce a tudo isto – e também tem sido esquecido – que, num Estado de Direito como se pretende o nosso, a anomalia psíquica, ainda que temporária, que impeça o agente de avaliar a licitude dos seus actos, determina a sua inimputabilidade.

É esta concreta regulamentação do aborto enquanto crime que se pretende alterar, atribuindo à mulher um direito absoluto e incondicionado a terminar a sua gravidez até às dez semanas. Em nome de uma suposta liberdade que, por regra, tem de ceder perante a existência de uma vida, ainda que potencial. Em nome da crueldade da prisão e do vexame público dos julgamentos, como se alguma mulher tivesse sido efectivamente presa por abortar o seu filho ou se a suspeita pública da prática de qualquer crime não fosse sempre humilhante, mesmo que protegida pela presunção de inocência. Sejamos sérios: as tais mulheres que o sim pretende proteger – que abortam por pressão dos companheiros, dos patrões, que se encontram desesperadas por não terem condições económicas para sustentar um filho – já são protegidas pela lei actual e pelos diversos mecanismos de que ela dispõe para evitar uma condenação injusta.

Do que se trata, em bom rigor, é de proteger e legitimar as mulheres que abortam fora deste quadro legal. As que não queriam ainda ter engravidado, as que não sabem quem é o pai, as que têm vergonha de assumir a sua vida sexual, as que não estão preparadas para a maternidade, as que não estão dispostas a sacrificar os seus confortos ou as suas carreiras. São apenas estas que a lei actual não protege e é apenas a estas que se veda a possibilidade de abortar no sistema nacional de saúde. Dir-se-á que não é assim que lei tem sido interpretada e que, se nada fizermos, as empurramos para o aborto de vão de escada. Concedo. Mas esse é um problema – entre tantos outros – do funcionamento da justiça e, consequentemente, do critério médico. Não creio que a única forma de resolver um problema de aplicação da lei seja transformar-lhe por completo o sentido.

Não discuto a bondade dos argumentos de quem entende que todas as mulheres devem ter um direito a abortar em condições de saúde adequadas e com dignidade. Simplesmente preferia não desistir da discussão sobre o que pode cada um de nós fazer para evitar uma gravidez indesejada ou um aborto clandestino. Sobre que planeamento familiar ensinam as escolas, os pais ou os técnicos de saúde. Sobre que meios contraceptivos fornece o Estado e a que custo. Sobre o tempo que demora a realização de uma consulta de ginecologia nos hospitais públicos. Sobre que mínimos de existência podemos proporcionar às mulheres pobres e aos seus filhos ou que educação lhes podemos dar. Mas a verdade é que o Sim, mesmo o mais bem intencionado, desistiu desta discussão. Esqueceu que enquanto formos pobres e atrasados as mulheres vão continuar a abortar e muitas vão fazê-lo fora dos hospitais por inúmeras razões culturais que jamais mudaremos por decreto. Esqueceu que vale a pena lutar por um planeamento familiar esclarecido e pelo aumento da natalidade.

Dir-me-ão ainda que o aborto é um acto médico e que a sua prática exige uma mediação na qual é determinante o critério do médico. Nada podia ser mais arrepiante nem mais hipócrita. Ou bem que o que se pretende é conceder um direito ao aborto até às 10 semanas – caso em que o critério do médico tem de ser irrelevante, já que o que está em causa é a liberdade da mulher – ou bem que se trata de um problema de penas e sanções, o que, como vimos, está longe de implicar o reconhecimento de um direito a abortar.

O aborto enquanto ultimo recurso deve ser excepcionalmente admitido: quando nem o Estado nem as famílias nem a sociedade sejam capazes de proporcionar uma gravidez e uma maternidade dignas. Lamentavelmente, a inércia dos partidos e dos poderes políticos nos últimos anos transformou a excepção num problema recorrente. O Estado, na verdade, quase nada fez pelo combate ao aborto. E só mesmo a confissão da nossa impotência para o ganhar permitirá a sua liberalização.

Acredite-se ou não, a campanha deste referendo já mudou muito. Qualquer que seja o resultado no domingo, provou-se que a consciência social dominante discorda da forma como a actual lei vem sendo aplicada. Infelizmente, não é isso que está em causa no referendo. Se daqui para a frente tudo ficar como dantes, como ameaçam os sectores mais radicais do Sim, os que querem ver as mulheres longe dos tribunais só se vão poder queixar deles próprios. Não perceberam a consciência social dominante. Ou percebendo-a, tentaram enganá-la.

Filipa Correia Pinto
Advogada»

Comentários:
Aos Senhores do Não!
Meus Senhores,
Sobre o tema que escrevem, a Interrupção Voluntária da Gravidez, por ser tão dramático, deveriam optar por uma argumentação, menos demagógica e sensacionalista, ou seja, mais séria!
Portanto o mínimo que vos peço é para que sejamos sérios!
Vamos a factos:
1º- O Aborto clandestino existe, não podem ignorar esse facto!
2º- Segundo dados da Associação para o Planeamento da Família, em 2006, fizeram-se, 23 000 abortos clandestinos em Portugal;
3º-Nos últimos 10 anos, 100 mulheres morreram vitimas de aborto clandestino;
4º- A lei actual é criminalizadora, poderá conduzir a uma pena de prisão de até 3 anos, sujeitando as mulheres que recorre à IVG, à humilhação pública, estigmatizando-as e devassando as suas vidas privadas.
O que se está a referendar é a seguinte questão: Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?. Nem mais nem menos!
Há oito anos estávamos nós a debater esta mesma questão, quando os senhores vieram defender o mesmo não. Um dos argumentos utilizados era afirmar que lei era perfeitamente aceitável para resolver a questão do aborto clandestino.
Ora, oito anos passados verificamos que tal não é verdade. Segundo as estimativas em Portugal realiza-se cerca de 23 000 abortos clandestinos.
Cerca de 23 000 mil mulheres, repito, recorrem ao aborto clandestino, pondo a sua vida em graves perigos físicos e psíquicos.
Logo a lei actual é ineficaz e não dá resposta ao problema do aborto clandestino.
Assim sendo, das duas uma, ou fazemos como os senhores, metemos a cabeça na areia como as avestruzes, compactuando com esta realidade ou temos capacidade mental suficiente para verificar que é necessário mudar a lei.
Em 1995 a Conferência Internacional das Nações Unidas sobre a População e Desenvolvimento deliberou que o aborto clandestino é um grave problema de saúde pública.
Um ano mais tarde, a IV Conferência Internacional da Mulher declara: “o aborto em condições precárias ameaça a vida de um grande número de mulheres, representando um perigo grave para a saúde pública e são, primeiramente, as mulheres mais pobres e mais jovens que maiores riscos correm”.
A União Europeia avançou também com recomendações aos seus estados membros: “O Parlamento incentiva os Estados-Membros e os países candidatos à adesão a pugnarem pela implementação de uma política de saúde e social que permita uma diminuição do recurso ao aborto e deseja que esta prática seja legalizada, segura e acessível a todos”. Os países da União Europeia com legislação mais restrita são Malta, Irlanda, Polónia e Portugal.
Em 2002 o organismo da ONU,CEDAW (Comité das Nações para a Eliminação da Descriminação Contra as Mulheres) lançou um aviso ao governo português: “O Comité está preocupado com as leis de aborto restritivas em vigor em Portugal, em particular porque os abortos clandestinos têm sérios impactos negativos na saúde das mulheres “.
Sendo impossível assegurar a infalibilidade dos meios de contracepção, a possibilidade de interromper uma gravidez em condições de segurança e no quadro da legalidade, em estabelecimentos de saúde devidamente autorizados, é uma exigência de saúde pública.
Para além disso, permite acompanhar e integrar no sistema de planeamento familiar todos aqueles que não tiveram acesso à contracepção e a uma educação sexual informada e responsável, evitando a ocorrência futura de gravidezes indesejadas.
Esta é uma solução que conduziu a um menor número de abortos no caso dos países europeus que por ela optaram.
O facto de defender a despenalização do aborto (é isso que está em causa!) não significa que não seja pela vida.
A interrupção de uma gravidez não é desejável por ninguém, o recurso ao aborto não pode ser encarado como algo simplesmente leviano e fácil.
Em todas as mulheres que recorrem á IVG há um conflito interior enorme, um grave dilema moral. Pensar o contrário é não confiar nas mulheres, é achar que o aborto vai explodir como se banalizasse um novo método contraceptivo.
Não encontram uma única pessoa, que vote SIM (como eu!) que defenda o aborto como método contraceptivo. O que se pretende é dar condições e fazer um acompanhamento ás mulher que em último recurso recorrem á IVG para que tomem essa decisão me consciência.
A liberalização do aborto é o já existe: chama-se vão de escada, uma economia clandestina que desgraça mais do que ajuda.
O que se pretende é acabar com esta liberalização forçada, tornar clinicamente seguro um acto que não deve ser pago com a cadeia, como prevê a actual lei.
Por isso digo SIM a uma lei que respeite as convicções pessoais, éticas, religiosas e filosóficas de cada um.
Digo SIM a uma lei que parta do princípio de as mulheres têm capacidade para decidir em consciência. Haverá sempre mulheres que optarão por levar até ao fim uma gravidez que não planearam; e haverá sempre, também, outras que optarão, em consciência, por não o fazer.
Digo SIM à vida – em toda sua plenitude.
Deixemos de ser hipócritas, preocupemo-nos com os que sofrem nos dias de hoje os reflexos de uma sociedade intolerante, egoísta e hipócrita!

SIM, pela saúde mas mulheres!!!
SIM, por uma maternidade e paternidade conscientes!!!
SIM, pelo planeamento familiar e pela educação sexual!!!
SIM, PELA DESPENALIZAÇÃO DA INTERUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ!!!
 
Ó Filipa já cá tinhamos a Assunção e agora vem a menina perorar sobre o que devia ser perguntado ou não, e mais esta lei e aquele bem jurídico. Ele há gente que se leva muito a sério. Oxalá alguém repare nas meninas e as chame para São Bento. Ou para Bruxelas. Há-os lá mais grunnhos sem dúvida.
 
Esta menina, coitadinha, está confusa, diz "não aceito que uma mulher que aborta em condições dramáticas seja tratada como criminosa. Não aceito que o termo voluntário de uma gravidez indesejada seja tratado com a mesma censura do que o homicídio ou o estupro. Custa-me que uma mulher que decide abortar o tenha de fazer sem apoio médico qualificado e em condições de higiene que põem em perigo a sua vida e sua integridade." concluindo que vota não, alguém já a esclareceu sobre a pergunta à qual irá respoder não?
O seu raciocínio, não vai mal, até me parecia estar a ler qualquer coisa como: "Os governos têm de avaliar o impacto dos abortos inseguros, reduzir a necessidade de abortar e proporcionar serviços de planeamento familiar alargados e de qualidade, deverão enquadrar as leis e políticas sobre o aborto tendo por base um compromisso com a saúde das mulheres e com o seu bem-estar e não com base nos códigos criminais e em medidas punitivas" (OMS 1997)
 
oh hugi, francamente..já não há paciencia para tanta mentira e tanta trafulhice..pena a sua mae não ter abortado antes de vc nascer....agora não estaruia a extreminar seres humanos legalmente com o seu "sim".

as pessoas humanas dignas de esse atributo, votam "não"...
mas os animais irracionais , votam "sim".
 
Escusam de inventar histórias. Sabem bem que matar é um crime e que quem o comete tem que ser condenado à pena que lhe couber depois de um julgamento.
Hoje só engravida quem quer ou quem for absolutamente desleixado.

Nuno
 
Uma excelente análise. Outra coisa não seria de esperar.
Rodrigo Adão da Fonseca
 
Extraordinária declaração de voto.
Subscrevo na íntegra.
Este é, exactamente, o meu não. Acrescentaria, apenas , me parecer que apenas com o não se poderá tentar refinar a actual Lei, sem subverter todo o sistema.
Parabéns e beijinhos

DDC
 





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