Postas Pescadas - VII

Texto esclarecedor de Cristina Líbano Monteiro, Assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra:

Declaração de voto---

1. O que me importa — a mim e julgo que a toda a gente — é que se façam menos abortos: que haja cada vez menos seres humanos que vejam a sua vida aniquilada por acto voluntário de outra pessoa; que haja cada vez menos mulheres que transportem, porventura em silêncio, o pesado fardo de terem posto as mãos — ainda que sem culpa ou com culpa diminuta — sobre o próprio filho.

2. Estou além disso convencida de que muitas destas mulheres, já em casa e depois de um aborto legal, dito seguro, em condições de assepsia e de comodidade até, sem espectros de julgamento e de penas, talvez sintam, após uma primeira sensação de alívio, o desespero de não conseguirem que se lhes vá da vida aquela criança que não chegaram a conhecer.

3. Não é verdade que seja o direito penal a criar em quem pratica um aborto sentimentos de culpa. Pode — concedo-o sem dificuldade — criar uma carga de angústia suplementar a quem decidiu abortar em caso não previsto na lei e teme, por isso, ser descoberta. Mas essa ansiedade passa — basta o correr do tempo —, não cria qualquer remorso. Um aborto à revelia da lei penal só traz sentimentos de culpa a quem percebe o que vai fazer (ou o que já fez) e a si própria se censura. E trará exactamente os mesmos quer o faça sem autorização legal, quer o pratique quando essa autorização exista. Se houver alguém — e a crer no que se tem ouvido, há — que considere o aborto como um direito seu, que veja só corpo próprio onde se esconde também um corpo alheio, essa mulher não sentirá remorsos, nem dentro nem fora da legalidade.

4. O direito penal — repito — não cria sentimentos de culpa em ninguém. Estes estão presentes onde há consciência de se ter violado uma norma de conduta que jamais deveria tê-lo sido.
O direito penal não substitui a consciência de ninguém. Mas contribui para que, na consciência de cada cidadão, se encontrem presentes os valores e as regras de conduta fundamentais da sociedade a que pertence.

5. Não vejo tão-pouco o direito penal como castigador, implacável justiceiro, pagando o mal com o mal, aplacando a sede de justiça da vítima, dos seus familiares ou dos seus concidadãos.
Num Estado de direito democrático, a pena é uma triste necessidade. E é-o simplesmente porque não somos perfeitos, porque nem sempre conseguimos discernir e sobretudo cumprir aquele mínimo de regras que tornam sofrível a vida em sociedade.
O direito penal cumpre tanto mais o seu papel, quantos mais abortos consegue evitar; não quantas mais condenações existirem.
Num Estado de direito democrático, o direito penal intervém apenas para proteger aqueles bens que, doutra forma, não encontrariam protecção social suficiente, ficando sujeitos à lei do mais forte ou ao jogo da sorte e do azar.
Ora é precisamente isto que se passa com a vida humana intra-uterina.

6. Suponho que todos estão bem conscientes de que a 11 de Fevereiro o que se nos pergunta é apenas isto: quer o aborto por simples desejo da mulher? Quer deixar a vida do embrião na exclusiva dependência de ser ou não desejado pela mulher que o concebeu e traz em si? O mesmo é dizer: quer que a comunidade portuguesa enquanto tal, retire a essa vida humana, até às dez semanas de gravidez, qualquer protecção, qualquer cuidado? Quer que o povo português aceite uma alteração legislativa que deixa o feto ao arbítrio da mãe e oferece a esta (à mulher grávida) uma «solução» brutal (para ela própria) e sem retorno?
A protecção penal, não sendo uma solução propriamente dita, permite que o aborto não se banalize e abre espaço para que se possa ajudar positivamente a mulher grávida aflita: escutá-la em ambiente de interesse e com garantia de anonimato, ajudando-a a ultrapassar os obstáculos que a impedem ou parecem impedir de aceder a uma maternidade digna.
Repito: o direito penal dissuade uma parte das candidatas ao aborto e deixa caminho aberto para soluções de solidariedade social, de aconselhamento amigo e eficaz, que a tantas mulheres tem devolvido a paz, o filho ou a filha e um futuro sem sentimentos de culpa. Dezenas de centros de apoio à vida, que o Estado em geral tem ignorado — chegando ao ponto de voltar atrás na concessão de alguma ajuda financeira atribuída pelo governo anterior — e que a comunicação social teima em não mostrar; dezenas de centros de apoio à vida, num trabalho calado e constante, apoiam por esse país fora milhares de mulheres grávidas e de crianças que sem eles não teriam nascido, centenas de famílias. Se este trabalho fosse divulgado — e ninguém ignora quem não está interessado na sua divulgação —, os portugueses não só votariam não, como depositariam nas magríssimas contas bancárias destes centros o suficiente para expandir a ajuda e oferecer-se-iam como voluntários para tanto que há que fazer nesta área.

7. Não advogo a manutenção como crime do aborto a pedido por entender que o direito penal deve ser uma espécie de embrulho dos dez mandamentos, ou curvar-se perante quaisquer mundividências mais os respectivos códigos morais. A questão é outra: é que ceder na norma que proíbe o arbítrio na disposição por uma pessoa de outra vida humana é ceder no próprio fundamento da comunidade a que pertencemos.

8. Mais. Não importa a punição — embora me pareça que não deve abdicar-se dela quando, tudo visto, for de punir; o contrário seria hipocrisia: crime não punível é um contra-senso. Pouco importa — repito — a punição penal. Se houver outra via para proteger a vida intra-uterina, que se mostre ao menos tão eficaz como a criminalização, serei a primeira a propô-la. De qualquer modo, quem me seguir neste ponto de vista, precisa de perceber que deve, neste referendo, votar não. Caso contrário, teremos o aborto a pedido como acto lícito e, mais do que isso, como direito potestativo de qualquer mulher grávida contra o Estado, i.e., qualquer mulher grávida, por simples manifestação do seu desejo (não precisa de o motivar), passará a ter o direito de exigir do serviço nacional de saúde um novo acto médico: o aborto.

9. Em suma: votar sim fecha possibilidades e para sempre. Significa querer aborto por simples desejo imotivado da mulher grávida (por agora até às 10 semanas de gravidez). O não abre-as. Permite que se adeque a lei penal a certas particularidades do crime de aborto. Permite que se invente porventura uma protecção eficaz da vida humana intra-uterina que não seja tão rude como a protecção penal. Permite uma maior expansão dos centros de aconselhamento que existem já às dezenas no nosso país e portanto uma maior atenção e dedicação às mulheres grávidas em dificuldades. Permite novos modos de lidar com o problema sem sacrificar pelo caminho um número grande de vidas humanas.

10. O governo e alguns partidos talvez não queiram “despenalizar” o aborto porque lhes doam as condições de vida de tanta gente. O governo e alguns partidos talvez não queiram “despenalizar” o aborto para acabar com o aborto clandestino: bem sabem que é fenómeno que nunca acaba; bem sabem que nem por ser clandestino é, em regra, mal feito. O governo e alguns partidos talvez não queiram “despenalizar” o aborto para que saiam da prisão as mulheres que nessa pena foram condenadas por o terem praticado: bem sabem que nas prisões portuguesas não há mulher alguma, nem sombra dela, e que esta realidade persistirá quer ganhe o não quer ganhe o sim. O governo e alguns partidos querem “despenalizar” o aborto para cumprir um programa ideológico, num seguidismo do que se faz lá fora que nem sequer lhes permite reconhecer os sinais de mudança que lá fora precisamente se evidenciam. Querem “despenalizar” o aborto por constituir um passo na luta por uma mudança de valores, por uma mudança de civilização da qual o bem vida é, pela sua radicalidade, o bem por excelência, no qual assentam, para cada um, todos os outros.

Cristina Líbano Monteiro

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