A violação e o aborto

Apesar de a questão do aborto na sequência de uma violação nada ter a ver com o referendo, porque esta excepção vem expressamente prevista na lei actual... já que tanto insistem, tomem lá a bicicleta.

A propósito deste tema, muito se tem falado ultimamente sobre a alegada incoerência do Não.

A tese é simples, ou melhor, simplista:
- Se “eles” acham que um feto é um ser humano e todos os seres humanos têm direito à vida, então têm de ser a favor da penalização da mulher violada que aborte. Se dizem que não é assim é porque são mentirosos e têm uma agenda política escondida para mudar a lei actual e mandar todas as mulheres para a prisão, ainda que tenham sido violadas. Certo? – Perguntam retoricamente.

- Errado!
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Para que haja um crime é necessário, cumulativamente, o seguinte:
1. Existência de um bem jurídico a proteger.
2. Existência de uma norma que incrimine as condutas que lesem esse bem jurídico.
3. Que o bem jurídico em causa tenha sido lesado.
4. Que a lesão tenha sido ilícita (ou seja, praticada através de um acto repudiado pelo direito).
5. Que haja culpa (isto é, que a pessoa em causa tenha agido de forma livre, sendo a sua conduta censurável, por lhe ser exigível que tivesse agido de modo diverso).

Justifica-se que assim seja: só atendendo à perspectiva da vítima e também o agressor é que faz sentido determinar o que é ou não crime.
Ora, o raciocínio com base no qual nos acusam de incoerência pressupõe que o crime existe logo que se verifica a lesão (ponto3.). E ignora, propositadamente ou por desconhecimento, a ilicitude e a culpa (pontos 4. e 5.).

Passo a dar dois exemplos em que existe lesão de um bem protegido pela lei e, ainda assim, não há crime.

Ex. 1: Agredir uma pessoa que empunha uma arma para nos matar lesa a integridade física dessa pessoa, mas a dita lesão é lícita porque a ordem jurídica nos reconhece o direito de nos defendermos. Assim, neste caso, a ofensa à integridade física não é crime, porque a nossa actuação não foi ilícita. No entanto, não é por isso que a integridade física deixa de ser um bem jurídico. Nem ninguém se lembra de acusar o legislador de incoerência.

Ex. 2: Se estiver a fazer tiro ao alvo e matar alguém que estava escondido atrás do alvo, sem que eu o visse, pratico um acto ilícito, porque a lei não me reconhece o direito de matar essa pessoa. No entanto, ajo sem culpa porque não podia adivinhar que ela estava ali escondida. Não pratico um crime, nem vou para a prisão. Ninguém se choca por isso, nem diz que a lei é incoerente.

Ora, o mesmo se passa com o aborto na sequência da violação:
1. Há um bem jurídico que é a vida intra-uterina.
2. Há uma norma que incrimina o aborto.
3. Há o acto de abortar.
4. Ainda que se possa considerar que há ilicitude, por ser desejável que a mulher não aborte,
5. não há culpa, porque embora fosse preferível que ela não abortasse, não é humanamente exigível que ela se abstenha de abortar. Não se lhe exige que seja heroína.

Isto porque, em caso de violação, há um efectivo conflito entre a vida do feto e a liberdade da mãe que foi violada e que, por conseguinte, engravidou involuntariamente (contrariamente aos outros casos em que a mulher consentiu na relação sexual que levou à concepção). Para além disso, depois de se ser vítima de uma violação, é mais do que natural que a mulher esteja traumatizada e que não esteja em condições de tomar a melhor decisão.
Por conseguinte, tal como nos exemplos acima indicados, justifica-se plenamente uma lei que, independentemente da técnica legislativa utilizada, considere que a mulher vítima de violação que aborta não pratica um crime. Sem qualquer incoerência.

PS: Esta exposição é apresentada de forma simplificada. Para uma melhor e mais desenvolvida explicação deste tema, remeto-os para os posts escritos mais abaixo por outros colaboradores juristas deste blog. Com um aviso: embora sejam textos brilhantes, podem não ser acessíveis a não iniciados.

Comentários:
nao concordo quando diz que "embora fosse preferível que ela não abortasse, não é humanamente exigível que ela se abstenha de abortar."porque apesar de isto ser com certeza muito dificil para a mulher, a vida do filho nao pode ser posta em causa já que este nao teve qualquer culpa das acçoes do seu pai.acho que a mulher deve ser psicologicamente acompanhada durante a gravidez deve ser orientada para, se quiser, dar o filho para adopcao.
 
Posso concordar com a seguinte frase "embora fosse preferível que ela não abortasse, não é humanamente exigível que ela se abstenha de abortar." No caso de se verificar médicamente grave perigo para a saude da mulher nomeadamente psicológico, que engloba tentativas de suicidio etc...

Parabéns pelo Blog

Força
 
Caro André e caro Anónimo:

Eu concordo que o ideal é que o aborto não seja levado a cabo, mesmo em caso de violação, e que sejam criadas todas as condições para que a criança venha a nascer (daí, em minha opinião, continuar a ser um acto ilícito).

No entanto, se apesar disso a mulher vier a abortar, não vejo como é que a sua actuação pode ser considerada culpável e dar lugar a uma condenação. Em que estado psicológico é que não se encontrará uma mulher que foi vítima de um crime tão hediondo e que ainda por cima na sequência disso engravidou? Estará ela nas melhores condições para tomar a atitude certa? Será que não se lhe estará a exigir um esforço quase sobre humano? Qual é que seria o efeito de uma eventual pena aplicada neste caso?
 
Os textos brilhantes ... são as ideias em si ou é o reflexo do monitor do computador?
 
O que o "SIM" não explica, relativamente à violação, é porque é que o aborto por violação deixa de ser crime e penalizado às 16 semanas e um dia ?!... Será que para o "sim" após as dezasseis semanas a violação já não é um crime grave? Ou... deixa de ser traumatizante para a mulher violada?

Evidentemente que essa retórica tem um único fim; desviar a argumentção do essencial! O essencial e o nuclear de toda esta questão: o zigoto, depois feto, é uma vida humana, única e irreptível!

Para o "sim" a única posição coerente (e do meu ponto de vista TRÁGICA!) é a total despenalização do aborto para qualquer prazo, mas... como não dá votos inventam retóricas para fugir à questão central!
 
"Será que não se lhe estará a exigir um esforço quase sobre humano?" SERÁ? SERÁ preciso perguntar? E já agora, adoro que acreditem tanto nos poderes da Psicologia. É infalível enquanto cura para todos os males.
 
Deixem de fazer rendinhas, por favor!
Depois de uma violação - que é uma situação, felizmente, rara -, poderá louvar-se a mulher que queira prosseguir com a gravidez mas não se pode, de maneira nenhuma, incriminar a que queira livrar-se do pesadelo que sofreu.
Chega de estupidez!
 
Cara Marta:

Não, não é reflexo do brilho do ecrã do computador, o texto é mesmo brilhante. Parabéns pela coragem. E pela clareza, que coragem sem competência é simplesmente temeridade. E por fim, é sintomático que, para além do comentário meio tonto do Carlos (sorry, old chap!), não tenha havido nenhuma réplica do lado do Sim... Escreva mais!
 
Muito interessante.
 
ó antónio mendonça,
acha que 16 semanas ou seja 4 meses (!) nao são suficientes para fazer a reflexão sobre uma gravidez????
óbvio que para além disso, levantam-se cada vez mais problemas em termos de uma intervenção cirurgica.
capisce?
 
Não será mais fácil aceitarmos a má lei tal como existe que já contempla as possíveis anomalias e se propõe julgar os casos restantes?
 





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