SERÁ QUE É DESTA QUE PERCEBEM?

Caro Rui,

Concedo-lhe, obviamente, que continue a defender as suas posições liberais. Até porque será para mim um excelente expediente para lhe tentar explicar algumas coisas.
Comecemos pelas certezas: estamos em profunda dessintonia. A visão que derramamos sobre o mundo, o homem e a vida coloca-nos, se não nos antípodas, pelo menos bem longe um do outro. Mas isso, em vez de me perturbar, só me leva a reforçar a posição expendida no primeiro texto que lhe dirigi.
Na verdade, se partimos do pressuposto – aceite por ambos – que as sociedades actuais são complexas e plurais, onde vai encontrar o arrimo que lhe permita dizer o que é permitido ou proibido? De onde brota “a ordem jurídica espontânea” de que o direito legislado há-de ser um reflexo?
Não colhe como proposta explicativa o recuo a tempos remotos, prévios à constituição do Estado Moderno. Não que só reconheça o direito estadual (há muito mais direito do que aquele que resulta da positivação das normas postas ou impostas por quem politicamente está legitimado a fazê-lo). Mas sobretudo pela compreensão da relação entre o homem e o todo que aí se vivenciava. É que, durante toda a Idade Média, “todo o privado era público”, dado o homem perspectivar-se na inserção num cosmos e orientar a sua vida de acordo com um plano de salvação colectiva.
E já antes, ainda que o Direito Natural não conhecesse os contornos medievalmente teológicos, o apelo à natureza como referente fundador da validade normativa era marca característica das comunidades.
Os problemas começam, primeiro, no momento do corte com a transcendência, depois, com a recusa da questionação jurídica no âmbito da filosofia prática. Somos remetidos, paulatinamente, do pré-positivismo jusracionalista para o esplendor do positivismo, de cariz exegético ou científico. E, na proporção inversa à problematicidade do problema anunciado, procurou resolver-se a aporia, olvidada, da fundamentação do jurídico acriticamente. Era direito o que o legislador considerasse como tal, procurando a todo o custo salvaguardar a neutralidade axiológica, em nome da nova ordem política e económica emergente. Recusa-se a ética, que nada teria a ver com o direito. Esquecendo que, eles mesmos, se arreigavam a um quadro axiológico, potenciador da segurança, da liberdade e da individualidade; Esquecendo que qualquer domínio da actuação humana, por o ser e que verdadeiramente o queira ser, implica a ética, não fosse esta, nas palavras de Lévinas, a filosofia primeira.
Falhada a missão metodológica de tal quadro de pensamento, pela constatação da sua impraticabilidade, feita perigar a ideologia primeira que o alicerçou, pela inexorável condenação de um esquema como este aos desmandos – sempre potencialmente despóticos – do poder político, volta a questionar-se qual o fundamento do jurídico. Poderá ele encontrar-se na imanência do direito constituído ou ter-se-á de procurar num referente transpositivo e transtextual? Sem que isso nos conduza ao Direito Natural.
Exemplo disso são todas as posições filosófico-jurídicas que, com diversos matizes, fazem apelo à natureza das coisas. Não se pode pensar numa lei moral, mas unicamente numa ordem humana. E o direito passa, e bem, a ser compreendido a partir da existência do homem.
Ora, para quem vê no homem apenas o indivíduo qualquer imposição jurídica seria um atentado. Reclama-se um direito a uma irredutível subjectividade, que seria o limite da validade objectiva do jurídico. A lei só seria legítima quando correspondesse à consciência dos membros da comunidade, devendo limitar-se, por isso, a regulamentar de forma elementar a vida comunitária, sem impor uma dada concepção do mundo.
Penso ser por aqui que o Rui se inscreve.
E é aqui que nos separamos. Porque para mim o homem não se exprime unicamente na irredutível subjectividade. À autenticidade do ser eu próprio comigo e em mim associa-se, porque o homem não pode deixar de viver em comunidade, o ser eu com o outro, para o qual olho e do qual extraio uma dignidade igual à minha. Por isso lhe disse que o direito tem uma radical matriz ética. Apenas e só porque o direito implica o encontro de seres humanos que, se não renunciarem a essa qualidade, terão de sempre tratar-se como seres eticamente cunhados.
E separamo-nos, ainda, porque ao debruçar-me sobre a perspectiva que o Rui defende a encontro coberta de aporias. Se houver um conflito irredutível entre o ser individual e o ser social, como o resolve? Será que quando o seu vizinho ouve música aos berros às duas da manhã não está aí presente um choque de subjectividades e individualidades? Dir-me-á de uma perspectiva liberal radical que a minha liberdade acaba quando começa a do outro. Eu dir-lhe-ei que sim, mas que mais. Porque não entendo, sem a pressuposição de um referente de sentido, que me permita fundar a validade, por que razão há-de o Estado interferir na modelação daquela relação? Ou mais. Por que razão o seu direito ao sono é superiormente valorado por referência ao direito à liberdade de acção – no caso consubstanciada no ouvir música aos berros – do seu vizinho? O ser humano só é pensável na relação intersubjectiva, que apele ao reconhecimento da sua própria dignidade e do outro. E o direito, nessa pressuposição, vai resolver o conflito de interesses resultante do choque e encontro de individualidades no mundo, que é finito e dotado de recursos escassos.
O direito resolve problemas práticos a vários níveis. Ao fazê-lo faz escolhas. Como as sustentar se não através da pressuposição de uma validade que nos remeta para a eticidade e para um quadro axiológico, entendidos nos moldes que lhe expus e afastados da moralidade? (Talvez o drama destes nossos debates seja não estar a ver que eu nunca falo de moral, mas sempre de ética). Onde vai buscar a ordem que brota espontaneamente? Não estará a esquecer que um juízo de valor pressupõe um quadro valorativo, até porque, implica sempre o olhar do sujeito sobre o objecto, sendo, como tal, uma construção não objectiva, de acordo com o que nos ensina a fenomenologia?
E nessa validade que faz apelo à raiz ética do ser humano, a liberdade assume foros de gigante. Concordo. Mas uma liberdade apenas pensável na abertura de pontes comunicantes com o outro.
E sim, a liberdade contratual é um pilar essencial do nosso ordenamento. Louvo-a, ensino-a, estimo-a. Mas repare, como o próprio nome lhe indica, ela só funciona no plano contratual, da acção voluntariamente predisposta, mediante a emissão de declarações negociais entre sujeitos capazes, para a produção de determinados efeitos práticos que se queiram ver tutelados pelo direito. Além disso, a liberdade contratual não funciona no vazio. Tem de exercer-se no quadro de um ordenamento e de uma normatividade existente. Sob pena de se instalar a anarquia ordenada. Sob pena de se frustrar o seu desiderato, até porque ela só funciona entre seres materialmente – e não apenas formalmente – iguais.
Mais lhe digo que dificilmente conseguirá explicar algumas das soluções predispostas pelo nosso ordenamento se continuar preso a essa visão das subjectividades e individualidades que colidem. Pergunto-lhe. Como consegue, a essa luz, justificar que seja crime o homicídio a pedido, o incitamento ou ajuda ao suicídio, já para não falar da propaganda ao suicídio? E fugindo do direito penal, como justificar – arreigado a uma visão conflitual, individual e dessolidária (não sou eu que o digo. São outros que, antes de mim, e acedendo pela sua mestria ao estatuto de filósofos do direito, o dizem) – que o consentimento para limitar determinados direitos de personalidade não possa ofender a ordem pública ou os bons costumes?
Mas vou mais longe. Ainda que queira ficar no patamar, a meu ver empobrecedor, da individualidade radical, relembro-lhe o post que o meu querido amigo João Vacas, ontem, lhe dirigiu, com a acutilância que o caracteriza. Se vir no embrião um ser humano, terá aí um indivíduo, pelo que, ainda que no quadro da sua concepção, não percebo as dúvidas acerca da legitimidade de o direito (o Estado) intervir.
E se tem dúvidas acerca desse estatuto de vida humana, para mais alicerçadas em São Tomás, não ditará um princípio da precaução que, na incerteza, não se corram riscos, sendo, portanto, prudente tutelar o embrião?
E agora que constato que longo vai o meu discurso, deixe-me tentar, ainda, reincidir na minha questão, à qual, consciente ou inconscientemente, não respondeu.
De facto, parece-me extemporânea a discussão em torno da legitimidade do Estado para intervir nesta matéria. É que, não sei se a má notícia o vai chocar, mas o aborto não deixa de ser crime, mesmo que o sim ganhe no referendo. A partir do momento em que o Estado diz que até às 10 semanas não é crime, já se arrogou de tal legitimidade. E o que eu não entendo é aquele prazo. Porque recuso a aceitar que o Rui, estribado em tantos conhecimentos sobre filosofia e política, me diga que às 11 semanas o Estado adquire, sabe-se lá vinda de onde, legitimidade para criminalizar. Donde resta a minha redução. O embrião é um ser humano, há que tutelá-lo. O embrião não é ser humano, não há que o tutelar.
Eu entendo que sim, convicta e apaixonadamente. Luto pelo não. Em consciência e coerentemente. Se entender que não é, eu respeito-o, mas peço-lhe que, também coerentemente, admita que aceita, então, o aborto aos nove meses.
A partir daí a nossa conversa será outra. Num outro patamar dialógico e com outros argumentos.
Sob pena de os liberais adeptos do sim e estribados nos seus argumentos ficarem reféns daquilo que eu acho ser um acto de hipocrisia. Dizem sim até às 10 semanas. Dizem não às 11, sem que na verdade se sustentem em algo para certificar esse hiato temporal.
Já agora duas notas mais, estas lapidares.
Nunca me passou pela cabeça denunciar um concreto crime de aborto às autoridades competentes, porque nunca tive conhecimento de nenhuma situação em concreto. E para que não me acuse de hipocrisia ou de fuga em frente, adiantar-lhe-ei que, a ter conhecimento de tal situação, seria por ela ocorrer com alguém meu amigo. E isso sim, não pelo abalo de convicções, mas pelos laços inelutáveis de amizade, tornaria a decisão difícil. Decisão essa que se colocaria, unicamente, ao nível da minha consciência e, como tal, seria uma decisão moral, a fazer apelo a uma síntese entre alguns dos exemplos da moral formalista e categórica de Kant e os valores de caridade que me são tão caros (tal como se geraria o dilema se soubesse que um amigo tinha roubado). E permita-me dois reparos a este propósito: como liberal, traiu-se. Acusou-me, mas quem resvalou na moralidade foi o Rui e não eu. Além do que, se eu debato uma norma legal, situo-me no plano da previsão normativa, muito diferente da ponderação judicativo-decisória concreta.
Por fim, os meus parabéns pela escolha da imagem. Sentido estético apurado. Se, porém, tentou com isso uma fragilização dos meus argumentos, acho que falhou o alvo. Sou católica, assumo-o, mas recuso liminarmente que essa condição se abata sobre mim como um anátema. Nunca nas minhas palavras encontrou a invocação teológica. Nem aos doutores da Igreja, também eles pensadores no plano temporal, recorri. Ao contrário de si…

Com os melhores cumprimentos,

Mafalda

P.S. Caro Adolfo, tentou e não conseguiu, porque, nessa sua tentativa, se baralhou mais do que pretendia. Leia, pondere, para não ter de amuar e escudar-se nas palavras de outros. Mas responda, ou tente responder, de onde brota essa ordem espontânea? O que é isso da natureza espontânea das coisas, se qualquer juízo implica sempre o olhar comprometido do´sujeito? Cumprimentos.

Comentários:
"SERÁ QUE É DESTA QUE PERCEBEM?"
Belo título. Tudo em maiusculas fica ainda melhor. Parabéns.
 
Acrescentaria que para liberal tem uma ideia muito alargada do Estado assistêncialista...
 
Quem? O Adolfo ou o Rui Albuquerque?
 
"A partir do momento em que o Estado diz que até às 10 semanas não é crime, já se arrogou de tal legitimidade. E o que eu não entendo é aquele prazo." Presumo então que seja contra a pilula do dia seguinte.
 
Isso, isso... discutamos a pílula do dia seguinte, que isto do aborto começa a não interessar!
 
É só para lhe dizer, caro Vox, que faço minha a sua vox.

JV
 
Caro anonymous,

obviamente que sou contra a pílula do dia seguinte. Ela é abortiva.
 
Cara Mafalda,
A sua resposta a Rui A. é lapidar.
Confesso que cada vez gosto mais do que escreve.
Ideias claras, convicções firmes. Esgrime argumentos com a ética e não com a teologia (também sou católico).
Parabéns e continue.
 
Caro Suponhamos,

obrigada pelas suas palavras.
Volte sempre.
 





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